quinta-feira, 28 de julho de 2011

Artigos e Notícias

O STF, OS PRECATÓRIOS E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA



Eduardo Talamini



Livre-docente, doutor e mestre em direito processual (USP)

Professor de processo civil e arbitragem (UFPR)

Sócio de Justen, Pereira, Oliveira e Talamini



1. A decisão no RE 599.628

No último 25 de maio, o STF concluiu o julgamento do RE 599.628, interposto pela Eletronorte – Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A. O acórdão e os votos ainda não foram publicados. Mas é possível formular algumas observações pontuais à luz daquilo que já noticiou o próprio serviço de divulgação do STF.

Por maioria, o Plenário da Corte confirmou decisão do TJDF, que havia negado a incidência do regime do art. 100 da Constituição na execução de sentença condenatória proferida contra a Eletronorte. Assim, reconheceu-se que a Eletronorte, sociedade de economia mista que se dedica à prestação de serviço público, submete-se ao regime executivo comum (com penhora e expropriação executiva).

Embora tal entendimento esteja em consonância com os termos expressos do texto constitucional, sua adoção pelo STF foi antecedida de significativo debate. A decisão foi tomada por maioria de votos (sete a três).

A tese vencida, da submissão das dívidas da Eletronorte ao regime de precatórios, foi adotada por três Ministros - Ayres Brito (relator original do recurso), Gilmar Mendes e Dias Toffoli. No entender do relator original, a Eletronorte presta "serviço público essencial em área carente, e o faz sob o signo da continuidade", de modo que, "não pode ser submetida ao mesmo regime que as empresas privadas, pois a cobrança do débito fora do regime de precatório pode pôr em risco os serviços que presta, que se enquadram nas funções de serviços essenciais previstos nos artigos 6º, 144 e 225 da CF" (cf. notícia do STF, de 03.11.2010).

A orientação prevalecente foi adotada pelos Ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Cezar Peluso. A corrente majoritária fundou-se no argumento de que a prerrogativa do art. 100 é restrita às pessoas de direito público ("Fazendas Públicas"), e a extensão de tal prerrogativa a sociedade de economia mista teria o condão de "desequilibrar artificialmente as condições de concorrência, em prejuízo das pessoas jurídicas e dos grupos de pessoas jurídicas alheios a qualquer participação societária estatal" (voto do Min. Barbosa, cf. notícia do STF, de 25.05.2011). Em mais de um voto, destacou-se que a Eletronorte não exerce um monopólio, mas uma atividade econômica em ambiente de concorrência.



2. A relevância da decisão para a efetividade da justiça e o devido processo legal

A importância do julgamento do RE 599.628 vai muito além do caso concreto ali analisado. Não apenas constitui precedente fundamental em relação a outros processos envolvendo a Eletronorte, como também constitui baliza aplicável a todas as demais sociedades de economia mista e mesmo - como se procura demonstrar no tópico seguinte - outro entes da Administração indireta. Tal pronunciamento do STF tende a funcionar como "decisão-quadro", a ser reiterada em outros recursos que versam sobre a mesma questão (CPC, art. 543-B, §§ 3º e 4º). Outras sociedades de economia mista prestadoras de serviço público vinham defendendo a mesma tese que a Eletronorte, até mesmo com algum sucesso em sede cautelar (p. ex., a Companhia de Abastecimento d'Água e Saneamento do Estado de Alagoas - CASAL chegou a obter efeito suspensivo em recurso extraordinário que versava sobre o tema: AC 2318-RefMC, 2ª T., v.u., Min. J. Barbosa, j. 09.06.2009, DJe 1º.07.2009).

Nas passagens até agora divulgadas dos votos componentes da corrente vencedora, enfatizou-se ser a aplicação do regime de precatórios à Eletronorte incompatível com os princípios gerais da ordem constitucional econômica brasileira. Com razão, destacou-se que tal empresa atua em regime de concorrência com outras; persegue e obtém lucro (tanto que inclusive distribui parte dele a seus empregados); tem ações comercializadas em bolsa... Assim, seria ilegítimo conferir-lhe prerrogativas e vantagens não concedidas ao setor privado (CF, arts. 170, IV, e 173, §§ 1º e 2º).

Mas esse não é o único - nem o principal - aspecto da questão. A adoção do regime de precatórios, com a consequente exclusão do regime executivo comum, implicaria severa restrição ao direito à tutela jurisdicional plena e efetiva a que fazem jus os credores da sociedade de economia mista. A execução por precatórios no Brasil - já em tese menos eficiente do que o regime geral, no que tange à satisfação do crédito - tornou-se na prática verdadeira falácia. Poucos são os entes da Fazenda Pública que honram seus precatórios dentro dos prazos constitucionalmente estabelecidos. Existem precatórios não pagos há décadas. Não bastasse isso, duas moratórias - além daquela já estipulada no próprio texto original da Constituição (ADCT, art. 33) - foram instituídas mediante Emendas Constitucionais (EC 30/2000 e EC 62/2009: apenas no final de 2010 o STF veio a suspender, em juízo cautelar, a eficácia do parcelamento instituído pela EC 30 - ADI 2362-MC, Pleno, v.m., rel. Min. Ayres Brito, j. 25.11.2010, DJe 19.05.2011; a constitucionalidade da EC 62 encontra-se pendente de análise - ADI ***). Estender esse regime às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público significaria reduzir, se não eliminar, a eficácia prática da tutela jurisdicional em favor dos credores de tais entes. E a efetividade da proteção jurisdicional é aspecto inerente à garantia do acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV) – que só pode ser limitada por outras normas constitucionais.

E não existe tal limitação na ordem constitucional. O art. 100 da Constituição é explícito ao prever o regime de precatórios unicamente para "as Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais". O conceito de "Fazenda Pública" é assente e incontroverso de há muito. Abrange, além da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, apenas as autarquias relativas a esses entes (aí incluídas as ditas "fundações públicas"). O dispositivo em causa estabelece uma exceção, limitadora de garantia fundamental, e, portanto, não pode receber interpretação ampliativa. Sob esse prisma, a tese ora rechaçada pelo STF seria violadora também do devido processo legal, não só no sentido direto de garantia da "legalidade", como também no concernente à exigência de um processo razoável.



3. O caso dos Correios: necessidade de revisão

Anteriormente, o STF havia afirmado a constitucionalidade do art. 12 do Decreto-lei 509/1969, que qualifica como impenhoráveis os bens, rendas e serviços da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - e pretende aplicar o regime dos precatórios a tal empresa (RE 225.011, 220.906, 230.051-ED, 229.696).

A orientação agora adotada no RE 599.628 justifica a revisão desse entendimento. Não há o que fundamente solução diversa numa hipótese e na outra. O fato de existir norma infraconstitucional estendendo expressamente o regime dos precatórios aos Correios é obviamente irrelevante. O alcance do regime excepcional da execução por precatórios é definido pela Constituição. Não é dado ao ato normativo infraconstitucional alargá-lo - e assim aviltar a garantia da efetividade da tutela jurisdicional. É bem verdade que - como já indicado - os votos vencedores enfatizaram a circunstância de a Eletronorte ser sociedade de economia mista que atua em regime não monopolístico, em concorrência com outros entres privados. Já os Correios são empresa pública à qual está atribuído o "monopólio postal" - conforme entendimento do STF (ADPF 46). Mas isso é irrelevante para a questão em pauta, por várias razões.

Em primeiro lugar, o art. 100 da Constituição - reitere-se - aludiu apenas a "Fazenda Pública", e não a "empresa pública", pessoa de direito privado integrante da Administração indireta que está fora daquele conceito. Quando a Constituição pretendeu estender à empresa pública o mesmo tratamento dado à Fazenda Pública, ela expressamente o fez (p. ex., art. 109, I, CF). De resto, no que tange à ordem constitucional econômica, aplicam-se à empresa pública os mesmos vetores aplicáveis à sociedade de economia mista (CF, art. 173).

A circunstância de os Correios exercerem um monopólio tampouco é relevante. Em primeiro lugar: esse não é um critério eleito pelo art. 100 da Constituição ao definir o âmbito de incidência do regime dos precatórios.

De resto, o monopólio desempenhado pelos Correios, relativo ao transporte e entrega de correspondências, é apenas uma das muitas atividades a que tal empresa se dedica. Vários outros serviços de entrega por ela desempenhados (de encomendas, periódicos, impressos...) não se revestem de tal característica - segundo o próprio entendimento do Supremo (também na ADPF 46). Mais ainda, os Correios diversificaram intensamente sua área de atuação nos últimos anos, vindo a abranger atuações de todo alheias a qualquer serviço de entrega (p. ex., o recebimento do pagamento de contas, a medição de consumo de serviços...). Todas essas atividades, que não são monopolizadas, são prestadas em regime de concorrência com entidades privadas. Sob esse aspecto, a situação dos Correios nem é distinta daquela identificada pelo STF relativamente à Eletronorte.



4. O adequado regime infraconstitucional de preservação da continuidade do serviço público na execução judicial de concessionárias

Some-se a tais circunstâncias o fato de que o regramento processual infraconstitucional atenta para a necessidade de evitar que a execução judicial inviabilize a prestação dos serviços públicos.

Por um lado, há regra geral que considera absolutamente impenhoráveis "as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão" (CPC, art. 649, V). É razoável interpretar essa disposição como abrangente dos bens necessários ao exercício da própria atividade essencial da empresa (e não apenas dos profissionais individualmente considerados) - incluindo-se aí, com até maior razão, a prestação de serviço público.

Por outro lado - e eis o mais importante -, há regra específica destinada inclusive às empresas prestadoras de serviço público. A penhora de empresa que funcione mediante autorização ou concessão submeter-se-á a parâmetros especiais, em respeito ao princípio da continuidade do serviço público. Haverá a nomeação de depositário ("de preferência, um dos seus diretores") com incumbência de administração do bem. Antes da arrematação, será ouvido o poder público que houver outorgado a concessão:

Art. 678. A penhora de empresa, que funcione mediante concessão ou autorização, far-se-á, conforme o valor do crédito, sobre a renda, sobre determinados bens ou sobre todo o patrimônio, nomeando o juiz como depositário, de preferência, um dos seus diretores.

Parágrafo único. Quando a penhora recair sobre a renda, ou sobre determinados bens, o depositário apresentará a forma de administração e o esquema de pagamento observando-se, quanto ao mais, o disposto nos arts. 716 a 720; recaindo, porém, sobre todo o patrimônio, prosseguirá a execução os seus ulteriores termos, ouvindo-se, antes da arrematação ou da adjudicação, o poder público, que houver outorgado a concessão.

Tais disposições são reiteradas no Projeto de novo Código de Processo Civil, ora em trâmite no Congresso Nacional (art. 787 no Anteprojeto; art. 819 no Substitutivo).



5. Conclusão

De mais a mais, problemas concretos que possam vir a surgir merecerão uma específica ponderação dos valores jurídicos envolvidos, balanceando-se os princípios da efetividade da execução e da continuidade e eficiência do serviço público. A observância do critério da proporcionalidade, imposição derivada da própria coexistência de princípios constitucionais igualmente relevantes em abstrato, é reafirmada, no campo específico da atividade jurisdicional executiva, no art. 620 do CPC.

Enfim, o sopesamento concreto dos bens jurídicos envolvidos pode justificar alguma atenuação dos rigores executivos. Esse é o antídoto necessário e suficiente para possíveis desvios - e não uma solução absoluta, na base do "ou tudo ou nada", destinada a exonerar entes da Administração indireta de se sujeitarem à força executiva propriamente dita.



Informação bibliográfica do texto:

TALAMINI, Eduardo. O STF, os precatórios e a Administração Pública indireta. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n.º 52, jun./2011, disponível em http://www.justen.com.br//informativo.php?informativo=52&artigo=549, acesso em 25/07/2011.