quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A legalidade e a eficiência nas contratações pela administração pública sob a ótica do Tribunal de Contas da União. Prevenção ou punição?

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A legalidade e a eficiência nas contratações pela administração pública sob a ótica do Tribunal de Contas da União. Prevenção ou punição?

Cláudia Guerra Oliveira da Costa é da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), graduada em Direito e mestre em Engenharia Civil na área de Transporte e Gestão das Infraestruturas Urbanas UFPE); pós-graduada em Licitações, Contratos Administrativos e Responsabilidade Fiscal (ESMAPE)

1 INTRODUÇÃO

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado assumiu novos papéis voltados ao atendimento do interesse público, notadamente no que tange à implementação de novos instrumentos de controle social sobre a atividade pública. Esse fato traduz os efeitos da adoção do Estado Social como modelo de Estado em substituição ao Estado Liberal até então vigente.

Foi instituída a procedimentalização das normas jurídicas com vista a viabilizar a aplicação do Direito positivado às expectativas básicas dos cidadãos relativamente aos direitos constitucionalizados.

Nesse contexto, o artigo 37 da Constituição Federal ao dispor sobre a Administração Pública tornou explicita a obrigatoriedade da obediência aos Princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, acrescido a eles o Princípio da Eficiência quando da Emenda Constitucional nº 19 em 4 de junho de 1998, que promoveu a Reforma Administrativa do Estado.

A partir desse evento, com a inserção do Princípio da Eficiência na norma constitucional e, por conseguinte, nesse patamar, de observância obrigatória pelas entidades da administração pública essa atuação fiscalizatória do Tribunal de Contas assumiu maior amplitude, haja vista ter sob responsabilidade auditar a atuação do agente administrativo não mais com ênfase apenas nos aspectos da Legalidade, legitimidade e economicidade, conforme preconiza o artigo 70 da Constituição Federal, mas com foco nos resultados que se quer obter com aquela licitação e contratação, para que ela seja eficiente, eficaz e atenda efetivamente ao interesse público.

Com efeito, e nessa esfera de controle externo, o que se tem verificado atualmente de forma mais veemente é uma atuação da Corte de Contas em duas formas de controles inter-relacionadas que são controle de forma punitiva, sugerindo a aplicação de sanções aos agentes que agem ao arrepio da lei e o controle de forma preventiva, com foco na adequação dos atos, com vista a apontar soluções para a correção de irregularidades constatadas ou relativamente aos indícios e saná-las no curso do processo.

Essa atuação também denominada de corretiva, salvaguarda o interesse público, na medida em que preserva os atos legais e regulares praticados e afasta os vícios acometidos a ele, sem atingir todo o conteúdo, minimizando os prazos e efeitos de uma revogação ou anulação sumária e reduzindo os prazos para a retomada após devidamente saneado.

Tal atuação de forma preventiva pelo Tribunal de Contas, não obstante ter em vista o atendimento de resultados de interesse público pela administração pública, tem sido alvo de críticas por alguns renomados doutrinadores partidários da estrita legalidade dos atos, contrapondo-se a outros não menos renomados, que defendem o respeito à legalidade, todavia de forma integrada a eficiência cuja existência explícita no texto constitucional tornou evidente e de observância obrigatória.

2 O PRINCíPIO CONSTITUCIONAL DA EFICIÊNCIA EVIDENCIOU A FORMA PREVENTIVA DE ATUAÇÃO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO NO EXERCÍCIO DO CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DO ESTADO

A Constituição Federal de 1988 dedicou capítulo próprio à Administração Pública – Constituição Federal de 1988 – Capítulo VII – Da Administração Pública – Artigos 37 a 43 – regulamentando expressamente essa atividade do Estado, impondo-lhe regras, diretrizes e limites aos quais o administrador executor dessa atividade não pode se furtar, sob pena de ver anulados os seus atos e responder civil e criminalmente por eles.

Dessa forma, a atividade administrativa do Estado exercida por meio dos órgãos e pessoas arrima-se, fundamentalmente, em dois pilares que são a supremacia do interesse público sobre o particular e a indisponibilidade, cuja titularidade cabe ao Estado, a quem compete proteger, resguardar e tutelar, no exercício da função administrativa, que deve ser exercida dentro dos princípios constitucionais explícitos e norteadores de tal atividade que são da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e aqueles correlatos ainda que de forma implícita.

É relevante destacar que, no exercício de seu mister constitucional, se tem verificado atualmente de forma mais veemente, uma atuação da Corte de Contas em duas formas de controles inter-relacionadas que são controle de forma corretiva e de forma punitiva, trabalhando mais efetivamente com foco na prevenção dos atos, com vistas a apontar soluções corretivas de irregularidades constatadas ou relativamente aos seus indícios, mediante a determinação de seu saneamento antes da conclusão do processo de contratação eivado de vícios que podem causar prejuízos ao erário público.

É o consequente natural do Estado Democrático de Direito, em que se constata nos países democráticos a existência de órgão de controle e fiscalização da gestão do dinheiro público, ao contrário dos países de regime ditatorial e, por conseguinte, atrasados no que se refere à sua organização econômica e política, nos quais, os dirigentes não permitem sob nenhum aspecto, o controle de seus atos.

Assim, é que já se consolidaram nos países modernos, os órgãos fiscalizadores da atividade administrativa do Estado, tendo maior importância quanto mais avançada for a instituição democrática.

Entre exemplos de economias desenvolvidas e administração moderna devidamente fiscalizadas por órgão de Controle Externo encontram-se, além de outros países da Comunidade Europeia, França, Espanha, Alemanha e Áustria, os quais têm, nas estruturas organizacionais, Tribunais de Contas com a função de fiscalizar os atos do Poder Público.

Essa realidade, ora vivenciada no Brasil, foi destacada pelo Professor Antônio Roque Citadini, Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, em palestra proferida na Escola Paulista da Magistratura no 3º Curso de Pós-Graduação Lato Sensu, Especialização em Direito Público, em São Paulo, cujo tema foi a Fiscalização da Administração Pública, segundo o qual:

[...] O Tribunal de Contas tem sido a instituição que serve de linha de frente para a sociedade, dirimindo dúvidas e apontando soluções em questões novas que surgem com as inovações trazidas pelos governantes. Enquanto o governo se altera a cada eleição e muitas vezes há mudanças nas diversas políticas públicas, o Tribunal de Contas é o órgão permanente, que não tem vínculo de hierarquia com o governo e se credencia, assim, para analisar com imparcialidadeas questões postas e indicar caminhos que permitam corrigir rumos, possibilitando um melhor e mais adequado controle social. [...] (CITADINI, 2005, p.6)

É de se concluir, pois, que o Brasil, a partir da consolidação do Estado Democrático de Direito, em especial, com a Promulgação da Constituição Federal de 1988, tem ressaltado a importância dos Tribunais de Contas e das Controladorias e vem-se consolidando ao longo do tempo no rumo da transparência dos atos administrativos praticados pelos agentes públicos no exercício de suas funções.

3 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, SUA ATIVIDADE INSTITUCIONAL, A RELAÇÃO DO CONTROLE PREVENTIVO, A EFICIÊNCIA E O CONTROLE PUNITIVO BEM COMO A LEGALIDADE DOS ATOS

Como é cediço, o controle da Administração é o poder de fiscalização e correção que sobre ela exercem os órgãos dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, com o objetivo de garantir a conformidade da atuação com os princípios a ela impostos pelo ordenamento jurídico. Encontra-se previsto , nos artigos 70 a 75 da Constituição Federal e de conformidade com o disposto no artigo 71, trata-se de controle externo da atividade administrativa exercida pela administração pública efetuado pelo Poder Legislativo com o auxílio do Tribunal de Contas.

Dito controle abrange a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial sob os aspectos da legalidade, legitimidade e economicidade (art.70) atuando de ofício ou mediante provocação por denúncia na forma como prescrevem os §§ 1º e 2º do artigo 74 da Constituição Federal.

O Tribunal de Contas da União desempenha função fiscalizadora, consultiva, informativa, judicante, sancionadora, corretiva, normativae de ouvidoria e no exercício dessas funções, possui autonomia não estando suas decisões sujeitas a referendo do Congresso Nacional.

Por não integrar a estrutura do Poder Judiciário, sua função não possui força judicial, sendo meramente opinativa considerando a sua condição de auxiliar e orientador do Poder Legislativo, embora quanto a esse, não esteja configurada qualquer relação de subordinação e as suas decisões não produzem coisa julgada, sendo passíveis de apreciação no que se refere ao aspecto legal, mediante a propositura de ação própria.

No que tange ao exercício de função corretiva, destacada neste artigo, dispõe o Regimento Interno do TCU em seu artigo 286, IX que:

IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

Assim, independentemente da aplicação de qualquer sanção, o TCU pode determinar a um órgão ou entidade que lhe seja jurisdicionado a adoção de providências para corrigir uma falha em seus procedimentos ou sustar atos ilegais (despesas ou outra infração), fixando um prazo para cumprimento.

O descumprimento de uma determinação quando feita formalmente pelo TCU ao órgão fiscalizado, constatada em ocasião posterior, enseja a aplicação de multa. A determinação para sustação de ato ou procedimento inquinado de ilegalidade pode ser feita também em caráter cautelar, na forma como dispõe o supra transcrito artigo do citado Regimento Interno.

Por outro lado, dentro do exercício da sua função sancionatória ou punitiva, encontra-se a sustação de processos licitatórios deflagrados ou dos contratos celebrados pela administração pública, uma vez detectada a existência de ilegalidade, ou tenha sido assinalado prazo ao órgão para sanar a irregularidade e esse não tenha adotado as providencias necessárias à regularização, constituindo assim, flagrante desrespeito à recomendação feita anteriormente.

Merece destaque nesse contexto, a atuação do Tribunal de Contas por meio de exame prévio do Edital de licitação e mediante provocação de interessado, seja pessoa física ou jurídica, seja licitante ou não.

Trata-se de atuação que se encaixa dentro do exercício de sua função corretiva e preventiva, e que encontra previsão legal na Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993 – Lei de Licitações e Contratos. Isso se depreende nas disposições do artigo 113 e dos parágrafos, a seguir transcritos:

Art. 113 O controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos regidos por esta Lei será feito pelo Tribunal de Contas competente, na forma da legislação pertinente, ficando os órgãos interessados da Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e regularidade da despesa e execução, nos termos da Constituição e sem prejuízo do sistema de controle interno nela previsto.

Parágrafo Primeiro – Qualquer licitante, contratado ou pessoa física ou jurídica poderá representar ao Tribunal de Contas ou aos órgãos integrantes do sistema de controle interno contra irregularidades na aplicação desta Lei, para os fins do disposto neste artigo.

Parágrafo Segundo – Os Tribunais de Contas e os órgãos integrantes do sistema de controle interno poderão solicitar para exame, até o dia útil imediatamente anterior á data de recebimento das propostas, cópia do edital de licitação já publicado, obrigando-se os órgãos ou entidades da Administração interessada à adoção de medidas corretivas pertinentes que, em função desse exame, lhes foram determinadas.

É de ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou quanto à função preventiva do Tribunal de Contas da União, atribuindo-lhe em alguns julgados proferidos, a obtenção de maior eficiência nas licitações e contratações públicas. Isso é o que se pode verificar do teor da decisão proferida nos autos do Mandado de Segurança n° 24510-DF segundo a qual [...] o Tribunal de Contas da União possui legitimidade para a expedição de medidas cautelares, em razão da garantia de eficácia que deve ser assegurada às decisões finais por ele proferidas.

4. A LEGALIDADE COMO VETOR DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DO ESTADO E A EFICIÊNCIA COMO PRINCÍPIO DA BOA ADMINISTRAÇÃO

Como visto anteriormente, o Princípio da Legalidade é o limitador da atividade administrativa do Estado, que não pode atuar sem que haja previsão legal e dentro dos limites.

Salvo no que se refere ao Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o interesse privado, que constitui princípio geral da atividade administrativa do Estado, a Legalidade é encarada por renomados juristas pátrios como vetor da atividade administrativa do Estado, que lhe colocam ainda que inconscientemente, num patamar superior em relação aos demais princípios. Temos, como exemplo, o Prof. Celso Antonio Bandeira de Melo, segundo o qual:

[...] o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo específico algum da Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele.(MELLO, 2008, p.96)

O Princípio da Legalidade atinge diretamente a prática dos atos administrativos, na medida em que prescreve que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina. A Administração por força deste princípio deve não apenas obedecer às leis e cumpri-las, mas as pôr em prática. Assim, diferentemente dos particulares, que podem fazer tudo o que a lei não proíbe a Administração somente pode fazer aquilo que a lei, previamente, autoriza.

Da mesma forma, a dinâmica das demandas públicas e das necessidades dos cidadãos exige da administração pública uma atuação rápida para que a ação seja eficiente e eficaz no trato com o interesse público envolvido.

E assim, a legalidade dos atos consubstanciados nos limites do Princípio que a ampara, depara-se com as necessidades prementes da coletividade exigindo do administrador público uma atuação imediata demandando para isso a necessidade de superação dos obstáculos e a identificação das oportunidades para uma atuação eficiente.

A eficiência é referida por Hely Lopes Meirelles (1999) como um dos deveres da Administração Pública, associando tal requisito ao dever da boa administração, no comentário a seguir transcrito:

[...] Dever de eficiência é o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros. (MEIRELLES, 1999, p. 97)

A operacionalização do Princípio da legalidade e da eficiência pode ser identificada na análise do princípio da eficiência feita pelo Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto o qual após apresentar a evolução do conceito de eficiência a partir da equiparação com o princípio da boa administração assim se manifesta:

[...] Entendida, assim, a eficiência administrativa, como a melhor realização possível da gestão dos interesses públicos, em termos de plena satisfação dos administrados com os menores custos para a sociedade, ela se apresenta, simultaneamente, como um atributo técnico da administração, como uma exigência ética a ser atendida, no sentido weberiano de resultados, e como uma característica jurídica exigível, de boa administração dos interesses públicos. (MOREIRA NETO, 2001, p. 103)

No artigo 37, caput, da Constituição Federal quando de sua promulgação, havia referência expressa à observância obrigatória pela Administração pública no exercício da atividade administrativa, de apenas quatro princípios que eram o da legalidade, o da impessoalidade, o da moralidade e o da publicidade.

Ao constitucionalizar o princípio da eficiência, o legislador proporcionou à máquina administrativa do Estado meios para alcançar de forma mais efetiva o interesse público do qual é tutor, sem contudo, segundo o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello sobrepujar a Legalidade. É o que afirma em sua obra o referido professor:

[...] A Constituição se refere, no art. 37, ao princípio da eficiência. Advirta-se que tal princípio não pode ser concebido (entre nós nunca é demais fazer ressalvas óbvias) senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais uma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência. O fato é que o princípio da eficiência não parece ser mais do que uma faceta de um princípio mais amplo já superiormente tratado, de há muito, no Direito italiano: o princípio da “boa administração”. (MELLO, 2008, p. 122)

Como se pode verificar, tal princípio ainda que incipiente, fazia-se presente dentre as prerrogativas da administração para o fiel exercício de sua função pública. Todavia, não integrava o patamar constitucional juntamente com os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade, pelo que tinha tímida observação pelos órgãos de controle externo da atividade administrativa.

É por isso que se denota que a partir de sua inserção no texto constitucional tornou mais explícito o real significado da boa administração, no sentido de tornar a administração pública eficiente oferecendo ao cidadão serviços públicos de maior qualidade a um menor custo e no menor espaço de tempo entre a demonstração da necessidade e o seu atendimento, afastando conceitos e práticas até então enraizadas

na administração pública, voltados a burocracia exacerbada aliada aos altos custos dos serviços e da estrutura administrativa e a ineficiência do atendimento às necessidades básicas dos cidadãos em detrimento do interesse público.

O dever de eficiência, ainda, quando não elevada a condição de Princípio Constitucional, já se encontrava consagrada na lei ordinária reguladora da atividade administrativa vigente, o Decreto-lei 200, de 1967, inclusive com forte referência na doutrina e jurisprudência pátrias, o qual submetia toda atividade da administração pública ao controle de resultado.

5. CONCLUSÃO: A ESTRITA LEGALIDADE NA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA NÃO DEVE OBLITERAR A EFICIÊNCIA NAS CONTRATAÇÕES PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

De tudo o que foi visto antes, torna-se relevante observar que o Princípio da Legalidade na Administração Pública adquiriu contornos mais amplos em sua aplicabilidade ao longo do tempo como forma de se adaptar a realidade do sistema jurídico vigente e à realidade vivenciada pelo robustecimento da democracia de uma maneira geral.

É indubitável que tal Princípio tenha importância capital por ser especifico do Estado de Direito. Ele impede que a Administração exija dos administrados comportamentos não previstos em lei, por expressa disposição constitucional insculpida no inciso II do artigo 5º, segundo a qual: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Ressalte-se, contudo, que não é possível admitir que os Princípios do Direito sejam considerados apartadamente quando se trata de administração pública, pois todos sem distinção complementam mutuamente os seus sentidos.

Da mesma forma, o controle preventivo exercido pelo Tribunal de Contas tem contribuído significativamente para a eficiência nas contratações por parte da Administração Pública, possibilitando aos gestores públicos uma atuação projetada para o atendimento ao interesse público por evitar que o dano se concretize em decorrência de um processo mal conduzido.

Essa vertente do controle por parte do Tribunal de Contas da União adquiriu contornos bem definidos e explícitos na fiscalização de serviços públicos. É o que se verifica nas palavras do Ministro Benjamim Zymler do Tribunal de Contas da União, na obra Direito Administrativo e Controle, segundo o qual [...] O Tribunal acompanha a prestação de serviços públicos nas áreas de energia elétrica, telecomunicações, serviços postais, portos, rodovias, ferrovias, transportes de passageiros interestaduais e internacionais, estações aduaneiras interiores – os portos secos -, e também a área de exploração das atividades econômicas ligadas ao petróleo e ao gás natural.

A diversidade e a complexidade dessas áreas exigem alto nível de especialização das equipes técnicas, o que vem impondo ao TCU grande esforço na área de capacitação de pessoal. [...] Não há, portanto, maiores dúvidas a respeito da larga extensão da atividade fiscalizadora do Tribunal. Não se restringe, contudo, a atuação do Tribunal a aspectos jurídico-formais. [...] Ademais, com a promulgação da Emenda Constitucional n° 19 1998, o princípio da eficiência foi erigido à norma constitucional.

Por conseguinte, compete também ao Tribunal verificar se as entidade sujeitas ao seu poder controlador atuam de forma eficiente. Frize-se, ademais, que a Constituição Federal expressamente atribuiu ao Tribunal o poder de realizar auditoria de natureza operacional, nos termos do art. 71, inciso IV. O objetivo deste tipo de auditoria vai muito além do mero exame da regularidade contábil, orçamentária e financeira. Intenta verificar se os resultados obtidos estão de acordo com os objetivos do órgão ou entidade, consoante estabelecidos em lei.

Têm por fim examinar a ação governamental quanto aos aspectos da economicidade, eficiência e eficácia. (ZYMLER, 2009, p.199-201)

E por fim, ainda nos oportunos comentários do Eminente Ministro:

[...] Descreveram-se os mecanismos de controle da Administração Pública nos Estados Constitucionais contemporâneos e, particularmente, no Brasil. Em especial, mencionou-se o controle financeiro e orçamentário implantado em nosso País, especificamente o controle externo titularizado pelo Congresso Nacional e exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União. [...] Outrossim, considerando a nova concepção de Estado, ganha o controle preeminência. Além do exame da legalidade, devem os órgãos controladores verificar a eficiência da gestão pública.

Assim, o controle preventivo ou corretivo como pode ser denominado, ao lado do controle punitivo que decorre de uma gestão fora dos padrões de legalidade e eficiência. Em observância aos Princípios constitucionais da Legalidade e da Eficiência, o controle preventivo ou corretivo possibilita uma nova visão do administrador no exercício de seu mister, beneficiando a coletividade colocando-se cada vez mais próximo do atendimento ao interesse público, sem se afastar da legalidade na prática de seus atos,

cumprindo assim, o objetivo final do sistema de controle da atividade administrativa, a melhoria e a eficiência na prestação dos serviços para o atendimento ao interesse público que envolve.

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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O princípio da oralidade e o sistema recursal nos Juizados Especiais

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O princípio da oralidade e o sistema recursal nos Juizados Especiais

Alexandre Freitas Câmara

Palavras-chave: Princípio da oralidade. Juizados Especiais Cíveis. Lei nº 9.099/1995.

Sumário: 1 Introdução - 2 O Princípio da oralidade e os Juizados Especiais Cíveis - 3 O sistema recursal dos Juizados Especiais Cíveis -4 O princípio da oralidade e a apelação nos Juizados Especiais Cíveis - 5 Conclusão

1 Introdução

Tenho, desde sempre, afirmado minha convicção no sentido de que todo o sistema dos Juizados Especiais Cíveis deve ser compreen­dido a partir dos princípios elencados no art. 2º da Lei nº 9.099/1995. Isto vale, evidentemente, para todos os institutos tratados no sistema dos Juizados Especiais, sejam eles estaduais ou federais, versando a causa neles deduzida sobre direito privado ou direito público.

Consequência direta disso é que os princípios referidos se apli­­­cam, também, ao sistema recursal estabelecido para os Juizados Especiais Cíveis. O que se pretende, com este ensaio, é demonstrar que, como con­sequência inexorável disso, não podem as Turmas Recursais, no exercício de sua competência recursal, reexaminar provas, limitando-se a devolu­ção operada às questões de direito, em razão da absoluta necessidade de respeito ao princípio da oralidade.

2 O Princípio da oralidade e os Juizados Especiais Cíveis

Um dos princípios mencionados no art. 2º da Lei nº 9.099/1995 é o da oralidade. Dentre todos aqueles princípios, este sempre me pareceu o mais relevante na determinação do modo como o processo deve se desenvolver perante esses órgãos jurisdicionais.

Digo isto porque os outros princípios, como o da informalidade e simplicidade e o da economia processual exercem, no sistema dos Juizados Especiais Cíveis, em minha opinião, apenas uma (e relevantíssima) função: atuam como vetores hermenêuticos, indicando a direção correta a ser seguida pelo intérprete das disposições das três leis que compõem aquilo que venho, sistematicamente, chamando de Estatuto dos Juizados Especiais. Assim, por exemplo, o princípio da economia processual permite ao intérprete compreender porque, no sistema dos Juizados Espe­ciais Cíveis, a citação por oficial de justiça se faz independentemente da expedição de mandado; do mesmo modo, o princípio da celeridade per­mite ao intérprete saber a razão pela qual existem os prazos recur­sais, nos processos que tramitam perante Juizados, costumeiramente são menores do que os estabelecidos para os processos que tramitam perante os juízos comuns.

O princípio da oralidade, porém, não obstante exercer também essa função, estabelece a técnica a ser observada no processo que tramita perante um Juizado Especial.

Para que se possa compreender melhor como se dá essa fixação da técnica, porém, impende ter uma noção mais precisa do que seja oprincípio da oralidade.

Impõe-se ter claro, em primeiro lugar, que a expressão processo oral não designa um sistema processual no qual seja proibida - ou impos­sível - a utilização da escrita. Oralidade (assim como escritura) designa um "modelo processual", em que são observados alguns postulados. A maior ou menor adesão a estes postulados é que permitirá afirmar que um determinado sistema processual é oral ouescrito.

Os postulados que compõem a oralidade processual são cinco preva­­­­lên­­­cia da palavra falada sobre a escrita; imediatidade entre o juiz e as fontes de prova; identidade física do juiz; concentração dos atos processuais em audiên­­­­cia e irrecorribilidade em separado das decisões interlocutórias.

Ao incluir o princípio da oralidade entre os princípios nortea­­­ dores do sistema dos Juizados Especiais Cíveis, a Lei nº 9.099/1995 impõe, pois, antes de tudo, que no processo que ali tramita prevaleça a palavra falada sobre a escrita. Daí decorrem, então, fenômenos como a possibilidade de ajuizamento oral da demanda (com sua redução a escrito pela secretaria do Juizado, que pode se valer de fichas ou formulá­ rios impressos); o oferecimento oral da resposta; a possibilidade de oposição oral de embargos de declaração; o requerimento verbal de execução da sentença. Não se elimina, por óbvio, a palavra escrita. Mas a palavra oral deve, ao menos em tese, prevalecer.1

No processo oral dos Juizados Especiais Cíveis deve-se observar, também, a necessidade de contato imediato entre o juiz e aqueles que prestam depoimento (sejam as partes, sejam as testemunhas), deve haver um contato imediato. Às partes se deve assegurar, assim, o direito a um day in the Court.2 De outro lado, é fundamental que o juiz tenha contato imediato com a testemunha, de forma a poder mais bem avaliar o con­teúdo de seu depoimento. No processo que tramita nos Juizados Espe­ ciais Cíveis (e, registre-se, também no processo que tramita perante os juízos comuns) o direito brasileiro estabelece que os depoimentos são tomados perante o juiz, o que permite afirmar a plena observância desse postulado.

De nada adiantaria, porém, esse contato imediato entre o juiz e as fontes da prova oral se não se observasse, também, a identidade física do juiz que colhe essa prova oral. Por conta disso é que o juiz que preside a audiência de instrução e julgamento e colhe a prova oral fica vin­cu­­ lado ao processo para o fim de proferir sentença.

Aqui é fundamental observar que não se aplica ao processo dos Juizados Especiais Cíveis o disposto no art. 132 do Código de Processo Civil, que afasta a vinculação do juiz que encerrou a colheita da prova oral. Nos Juizados Especiais Cíveis, o juiz só deixa de estar vinculado se deixa o próprio exercício da magistratura. Isto, porém, não deveria ser um problema, já que, nos termos do disposto no art. 28 da Lei nº 9.099/ 1995, na audiência de instrução e julgamento serão ouvidas as partes, colhida toda a prova e, em seguida, proferida a sentença. Ora, se a sentença será proferida na própria audiência em que a prova oral é produzida, não há, evidentemente, qualquer problema em se estabelecer um sistema de total vinculação do juiz ao processo, sem previsão de qualquer exceção.3

Para que tudo isso funcione bem, impõe-se, ainda, a observância do postulado segundo o qual os atos processuais devem ser concentrados em uma audiência ou, no caso de haver necessidade de realização de mais de uma delas, estas deverão realizar-se com o menor intervalo de tempo possível. Isto é fundamental diante do fato de que, prevalecendo a palavra falada sobre a escrita, é preciso criar mecanismos que auxiliem o juiz a decidir enquanto ainda preserva em sua memória os fatos prin­cipais ocorridos durante a tramitação do processo. Este é o postulado que legitima a conversão da sessão de conciliação em audiência de instrução e julgamento, sempre que de tal conversão não resulte prejuízo para a defesa.

3 O sistema recursal dos Juizados Especiais Cíveis

O sistema de recursos dos processos que tramitam perante os Juizados Especiais Cíveis é, como não poderia deixar de ser, mais simples do que o do processo que tramita perante os juízos comuns. Em linhas gerais, e simplificadamente, costuma-se afirmar que esse sistema só contém três recursos: "recurso inominado", embargos de declaração e recurso extraordinário.

A rigor, porém, o sistema recursal dos Juizados é ainda um pouco mais complexo (e completo) do que isso. Na verdade, os recursos cabí­veis nos processos que tramitam perante os Juizados Especiais Cíveis são os seguintes: apelação, agravo, embargos de declaração, recurso extraordinário e embargos de divergência. É preciso, porém, explicar um pouco melhor o que acaba de ser dito.

Em primeiro lugar, a Lei nº 9.099/1995 prevê o cabimento de re­curso contra a sentença. A prática forense consagrou o uso da denominação "recurso inominado" para este recurso. Sempre afirmei, porém,4 que na verdade o que se tem aí é a apelação. É preciso insistir nesse ponto: a lei dos Juizados Especiais Cíveis não criou um novo recurso contra as sentenças. O que ela fez foi afirmar que contra a sentença é cabível a interposição de recurso. E este recurso só pode ser o cabível contra as sentenças em geral: apelação.

Não impressiona o fato de ser o recurso cabível nos Juizados Especiais Cíveis em dez dias, e não em quinze (como se dá no sistema do Código de Processo Civil). Basta dizer que - tratando dos Juizados Criminais - a própria Lei nº 9.099/1995 admite o cabimento de apelação em dez dias (art. 82, §1º). Também não impressiona o fato de o recurso não ser julgado pelo Tribunal de Apelações, mas pela Turma Recursal. O mesmo se passa nos Juizados Criminais, e nessa sede a lei é expressa em afirmar que o recurso é o de apelação (art. 82, caput).

Poder-se-ia perguntar por que o legislador não chamou expres­samente esse recurso de apelação. Esta, porém, é uma daquelas perguntas para as quais não há respostas adequadas. Ao intérprete do sistema, porém, isso não pode interessar (ainda mais pelo fato de que o legislador tampouco deu ao recurso qualquer outro nome). O importante é o exame da essência do instituto, e não pode haver dúvidas de que o recurso cabível contra sentença é - receba da lei expressamente esse nome ou não - a apelação.

Afirmei ser cabível também nos Juizados Especiais Cíveis o recurso de agravo. Isto precisa ser mais bem esclarecido.

Ao determinar a incidência do princípio da oralidade no processo dos Juizados Especiais Cíveis, a Lei nº 9.099/1995 estabeleceu que nesse microssistema processual seriam irrecorríveis as decisões interlocutó­­ rias. Ocorre que, posteriormente, a lei que regulou os Juizados Fede­rais (Lei nº 10.259/2001) foi expressa em afirmar, em seu art. 5º, o cabimento de recurso contra a decisão acerca do cabimento ou não de tutela de urgência.

Sempre sustentei a necessidade de se tratar as diversas leis que tratam de Juizados Especiais como se compusessem um só microssis­tema. Tenho sempre afirmado que essas leis, juntas, compõem o Estatuto dos Juizados Especiais, ideia que acabou por ser acolhida expressamente pelo legislador quando da elaboração da lei que rege os Juizados Especiais da Fazenda Pública (que fala de um sistema dos Juizados).

Admitida a existência desse microssistema composto pelas três leis que regem o processo nos Juizados Especiais, é de se admitir, também, o constante diálogo entre esses três diplomas legislativos. É o que, em doutrina, convencionou-se chamar de diálogo das fontes.

Assim sendo, a partir do momento em que uma dessas leis admite o cabimento de agravo contra um determinado tipo específico de decisão interlocutória, essa possibilidade se espalha pelas outras leis que integram o Estatuto dos Juizados Especiais.5

É preciso, pois, admitir o cabimento de agravo (que será inter­posto por instrumento) contra a decisão que defere ou indefere tutelas de urgência (cautelares ou antecipatórias de tutela). E, por não haver nas leis que compõem o Estatuto dos Juizados Especiais qualquer disposição acerca da forma como esse agravo será interposto, aplicar-se-ão, em caráter subsidiário, as regras do Código de Processo Civil acerca dessa espécie recursal.

Além da apelação e do agravo, o microssistema processual dos Juizados Especiais admite a oposição de embargos de declaração contra decisões obscuras, contraditórias ou omissas.6 Estes são cabíveis, sempre, no prazo de cinco dias, podendo ser opostos por escrito ou oralmente. O oferecimento de embargos de declaração tempestivos contra sent­ença suspende o prazo para a interposição de apelação, por qualquer das partes.7 Já quando interpostos contra acórdão, os embargos de decla­ ração interrompem o prazo para oferecimento de outros recursos.8

Contra acórdãos das Turmas Recursais admite-se - desde que preenchidos todos os requisitos, inclusive os específicos, como o pre­questionamento e a repercussão geral da questão constitucional - o recurso extraordinário, a ser julgado pelo STF. E da decisão proferida pelo STF pode, desde que preenchidos os requisitos de sua admissibili­dade, ser interposto o recurso de embargos de divergência.9

4 O princípio da oralidade e a apelação nos Juizados Especiais Cíveis

De um modo geral, a determinação contida na lei no sentido de que se reja o processo dos Juizados Especiais Cíveis pelo princípio da oralidade não produz qualquer consequência sobre o modo como se desenvolvem os recursos. Exceções a isso, porém, encontram-se no trato da apelação e do agravo. Este estudo fica centrado na influência que o princípio da oralidade exercerá sobre o funcionamento da apelação nos Juizados Especiais Cíveis, mas o leitor atento saberá determinar as consequências que, mutatis mutandis, se operarão sobre o agravo.

É costume afirmar-se, em sede de doutrina, que a apelação é o recurso por excelência.10 É que a apelação é o recurso que permite observar-se, de forma plena, o princípio do duplo grau de jurisdição, provocando um reexame completo da causa, tanto no que diz respeito à matéria de direito quanto no que concerne à matéria de fato.11

Pois é exatamente este raciocínio que tem levado a que se sustente, a meu ver de modo equivocado, que na apelação cabível nos processos dos Juizados Especiais Cíveis é possível às Turmas Recursais o reexame das questões de fato e de direito.

É preciso dizer, antes de tudo, que é perfeitamente possível admitir-se a previsão, em um sistema processual, do cabimento de apelação apenas para que se provoque o reexame de matéria de direito, subme­tida a análise das questões de fato a um único grau de jurisdição.12 Além disso, é sempre preciso ter claro que o reexame das questões de fato pelo órgão competente para conhecer do recurso pressupõe, necessariamente, que este tenha à sua disposição as mesmas condições para atuar que o órgão originariamente competente para a causa. Sobre o tema, vale mencionar importante lição doutrinária: "A possibilidade de o tribunal de recurso conhecer de matéria de facto (além de, claro está, apreciar matéria de direito) pressupõe que a esse tribunal são garantidas, pelo menos, as mesmas condições que estão asseguradas ao tribunal recorrido. O problema assume especial acuidade no que se refere à oralidade e imediação, pois que - dir-se-á com alguma razão -, se estas contribuem decisivamente para o bom julgamento da causa (em especial, no que se refere à apreciação da matéria de facto), parece contraditório com a função dos tribunais de recurso retirar-lhes os benefícios delas decorrentes".13

Em um sistema processual como o estabelecido pelo Código de Processo Civil, em que a oralidade não é o modelo de processo adotado,14 não há maiores problemas na admissão de um novo juízo sobre os fatos a ser realizado pelo tribunal recursal. Afinal, todo o reexame dos fatos empreendido pelo tribunal de apelação se faz sobre escritos (aí incluído o termo dos depoimentos tomados no juízo inferior).15

O mesmo não se dá, todavia, em um sistema de oralidade pro­­ ces­sual, como é o dos Juizados Especiais Cíveis. Neste sistema, a Turma Recursal, ao julgar a apelação, fica necessariamente vinculada aos prin­cípios norteadores do processo nos Juizados, estabelecidos pelo art. 2º da Lei nº 9.099/1995.

Assim sendo, é de se considerar que no desenvolvimento do pro­cedimento recursal, fica a Turma vinculada aos postulados que compõem o princípio da oralidade. Dessa afirmação é que se extrai a impossibili­dade de que a Turma Recursal reexamine questões de fato. É que, ao fazê-lo, a Turma Recursal terá apreciado e valorado provas que não colheu, notadamente (ainda que não exclusivamente) as provas orais. Afinal, caso valore as provas produzidas pelo Juizado de origem, a Turma Recursal incidirá no equívoco de desconsiderar o postulado que impõe, em um processo oral, a imediatidade entre o juiz e as fontes de prova.

Isto se diz porque, num sistema de processo oral, precisa-se ter sempre presente a ideia de que o juiz do fato é o juiz que colhe a prova. E se é assim, não se pode admitir que, em grau recursal, haja uma nova valo­ ração da prova, sob pena de se comprometer todo o sistema.

5 Conclusão

De tudo quanto se expôs, a única conclusão possível é esta: a prática já consagrada, de permitir à Turma Recursal o reexame integral da matéria em sede de apelação, inclusive quanto à matéria de fato, contraria o disposto no art. 2º da Lei nº 9.099/1995, revelando-se incompatível com o modelo processual inspirado na oralidade que se construiu para os Juizados Especiais Cíveis. Pode-se concordar ou não com a opção do legislador; pode-se considerar que esta leva a resultados melhores ou piores do que os que seriam alcançados com a adoção de outro sistema. O que não se pode é, simplesmente, desconsiderar-se a escolha conscien­temente feita pelo Estatuto dos Juizados Especiais, tratando-se o processo que tramita perante estes tão importantes órgãos jurisdicionais como se fossem processos ordinários, desses que tramitam nos juízos comuns, regidos pelo Código de Processo Civil. Essa desconsideração pela escolha do legislador é perniciosa e deve, por isso, ser a todo custo combatida.

1 Digo em tese porque, como sabem todos os que têm experiência prática nos Juizados Especiais Cíveis, raramente os atos das partes são orais. Petições iniciais, contestações, embargos declaratórios, requerimentos executivos, tudo isso se costuma fazer por escrito, como se fossem destinados aos juízos comuns.

2 Trata-se do direito, costumeiramente reconhecido nos sistemas jurídicos de origem anglo-saxônica, a um "dia perante o Tribunal". Não posso, porém, deixar de registrar que a tendência, mundialmente observada, de uso de novas tecnologias no processo judicial pode levar a que as audiências se realizem através da técnica da videoconferência, o que reduziria bastante essa garantia. Não obstante a inexorabilidade do uso das novas técnicas, penso que se deve receber com cuidado algumas inovações, sob pena de se provocar uma "desumanização" do processo, com o fim do contato pessoal, substituído por contatos virtuais.

3 Tudo isso, porém, se diz apenas em tese. É que, na prática, houve um total desvirtuamento do sistema. Os juízes que atuam nos Juizados Especiais Cíveis, inexplicavelmente, não proferem suas sentenças na audiência. Levam os autos conclusos para sentença, aplicando uma regra contida no Código de Processo Civil que permite ao juiz proferir a sentença no prazo de dez dias após o encerramento da audiência. Esta regra, contida no CPC, tem caráter geral, e não pode prevalecer sobre os precisos e claros termos do que consta no já citado art. 28 da Lei nº 9.099/1995. A prática está, como dito, inteiramente desvirtuada. Não só as sentenças não são proferidas desde logo, como determina a lei, mas - para piorar ainda mais - ainda se designam "audiências de leitura de sentença". Essas audiências - que são, a rigor, falsas audiências, pois não se realizam na verdade, com as partes tão somente comparecendo à secretaria do Juizado para tomar conhecimento do teor da decisão - além de tudo, contrariam ainda um outro princípio, o da celeridade processual, também estabelecido no art. 2º da lei entre os que norteiam o processo nos Juizados Especiais Cíveis.

4 Isso consta - como todas as minhas outras opiniões anteriormente manifestadas sobre Juizados Especiais Cíveis - do livro em que faço uma exposição sistemática do microssistema processual dos Juizados. Cf., pois, Alexandre Freitas Câmara. Juizados especiais cíveis estaduais, federais e da Fazenda Pública: uma abordagem crítica. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Passim.

5 Não posso, aqui, deixar de observar que deveria ter havido, também, a previsão de cabimento de agravo contra (algumas, pelo menos) decisões interlocutórias proferidas in executivis. A inadmissibilidade do agravo contra essas decisões - como, e.g., a que determina a penhora de um bem ou a que defere sua adjudicação leva ao uso - em tese inadequado, mas absolutamente justificável na prática forense, do mandado de segurança como sucedâneo recursal.

6 Duas observações precisam ser feitas neste ponto. A primeira é a de que também nos Juizados Especiais Cíveis se deve admitir a oposição de embargos de declaração contra decisões interlocutórias. A segunda é que se deve reputar como não escrita a afirmação, contida na Lei nº 9.099/95, de que os embargos de declaração seriam cabíveis quando na decisão houver dúvida. Isto se diz porque a dúvida é, na verdade, um estado subjetivo daquele que lê o teor da decisão, provocado por obscuridade, contradição ou omissão em seu texto.

7 Suspende, e não interrompe, diferentemente do que se dá no sistema do Código de Processo Civil.

8 Assim já decidiu o STF: AI no AgR nº 451078/RJ, rel. Min. Eros Grau, j. em 31.08.2004.

9 Deixo, aqui, por serem absolutamente irrelevantes para a compreensão do que se pretende sustentar neste ensaio, de apresentar quaisquer considerações sobre o cabimento - evidente, diga-se - de agravo contra a decisão que, na origem, deixa de admitir o recurso extraordinário interposto.

10 Esta frase já se tornou um verdadeiro lugar-comum. É a mesma empregada, entre outros, por Flávio Cheim Jorge (Apelação cível: teoria geral e admissibilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 51). Também outros doutrinadores brasileiros a empregam, como se vê, por exemplo, em José Carlos Barbosa Moreira (Comentários ao Código de Processo Civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 5, p. 409). Na doutrina estrangeira mais autorizada, a mesma frase pode ser lida, e.g., em Loïc Cadiet e Emmanuel Jeland (Droit judiciaire privé. 5. ed. Paris: LexisNexis, 2006. p. 507) ("voie de recours ordinaire par excellence").

11 Neste sentido, Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Taruffo (Lezioni sul processo civile. 4. ed. Bolonha: Il Mulino, 2006. v. 1, p. 612).

12 Este é o sistema tradicionalmente adotado nos ordenamentos anglo-saxônicos, como já apontava Cappelletti em seu célebre "parecer iconoclástico". Cf., pois, Mauro Cappelletti (Dictamen iconoclástico sobre la reforma del proceso civil italiano. In: CAPPELLETTI, Mauro.Proceso, ideologías, sociedad. Trad. esp. de Santiago Sentís Melendo e Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1974. p. 279-280). Impõe-se observar, porém, que no moderno direito processual inglês tem-se admitido, ainda que em casos excepcionais, que a Court of Appeal reexamine o material probatório ou até colha novas provas. Sobre o ponto, Neil Andews (O moderno processo civil. Trad. bras. orientada e revista por Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 194-197).

13 SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997. p. 399.

14 Venho já há bastante tempo sustentando que no sistema do Código de Processo Civil o que se adotou foi um modelo de "processo escrito mitigado". Sobre o ponto, seja permitido fazer referência ao que está escrito em Alexandre Freitas Câmara (A oralidade e o processo civil brasileiro. In: CÂMARA, Freitas. Escritos de direito processual: primeira série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 22-29). Voltei ao tema, posteriormente, em Alexandre Freitas Câmara (A oralidade e o processo civil brasileiro: estado atual da questão. In: CÂMARA, Freitas. Escritos de direito processual: terceira série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 60-66).

15 Na qualidade de integrante de um tribunal de segunda instância, não posso deixar de registrar aqui a dificuldade, que muitas vezes tenho, de valorar as provas que foram produzidas oralmente, já que não tive contato imediato com os depoentes. Aqui, porém, é preciso registrar o fato de que a adoção de novas tecnologias, com a gravação em arquivos audiovisuais das audiências, certamente modificará o modo como as Cortes Recursais se relacionam com a prova. Observou o ponto o processualista norte-americano Paul Carrington (Technology and civil litigation in the United States in the twenty-first century. In: KENGYEL, Miklós (Coord.). Electronic Justice: Present and Future. COLLOQUIUM OF THE INTERNATIONAL ASSOCIATION OF PROCEDURAL LAW. Pécs: University of Pécs Faculty of Law, 2010. p. 164), que narra um caso em que a Suprema Corte dos EUA, em um julgamento ocorrido em 2007, contrariando seu papel tradicional de revisora das questões de direito, reexaminou provas em um processo em que se tratava de responsabilidade civil pelos danos decorrentes de um acidente de trânsito que foi inteiramente filmado através de uma câmera que estava em um dos automóveis envolvidos.


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Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:


CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da oralidade e o sistema recursal nos juizados especiais.
Biblioteca Digital Revista Brasileira de Direito Processual - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, out./dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 22 agosto 2011.