Motivação judicial e ação de improbidade: a validade da decisão que acolhe ou rejeita a inicial e os meios de sua impugnação |
Ruy Samuel Espíndola |
Nota constante no currículo do autor1 Palavras-chave: Ação de improbidade. Motivação judicial. Poder Judiciário.
Este curto ensaio se ocupa de chamar a atenção para uma das garantias processuais inerentes ao devido processo legal2 em ação de improbidade. A higidez constitucional da decisão que aprecia a petição inicial, recebendo-a ou rechaçando-a, após a apresentação, pelo acusado, de defesa preliminar, segundo uma adequada discussão das exigências da motivação judicial,3compreendida à luz dos direitos fundamentais.4 A Constituição da República, em seu art. 93, IX, estabeleceu, de forma peremptória: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as suas decisões, sob pena de nulidade. Calha afirmar que “decisão” é o gênero, do qual a “sentença”, as “decisões interlocutórias simples” e “as complexas” são as espécies. Assim, não distingui a Constituição quais decisões seriam motivadas, pois todas devem ser dignas de tal apanágio. E, em matéria constitucional, onde não distingue a norma, não é lícito ao intérprete distinguir! E relativamente aos processos de improbidade, os §§8º e 6º, do artigo 17, da Lei nº 8.429/92,5 falam em decisão judicial fundamentada e exigem que a petição inicial seja instruída com documentos ou justificações que contenham indícios suficientes da existência de ato de improbidade ou da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas “provas”. Além disso, especifica o §7º: “estando a inicial em devida forma”. Não obstante a democraticidade e republicanidade desses dispositivos constitucionais e legais, leituras conservadoras e restritivas, frustadoras da supremacia constitucional e da clareza garantística desses dispositivos, apregoam o seguinte equívoco (às vezes de forma inconfessa...): a decisão que recebe a inicial de improbidade dispensa motivação exauriente ou precisa atenção aos elementos oferecidos pela parte ré na demanda de improbidade. Essa posição errônea merece análise e reflexão da comunidade jurídica, principalmente dos membros do Poder Judiciário, que por acomodação na fase inicial do processo de improbidade acaba dando seguimento a uma infinidade de demandas temerárias, por falta de adequada análise ab initio! E não esqueçamos que para o MP e demais colegitimados essa é uma “ação barata”. Não pagam quaisquer honorários ou custas caso sucumbam... Nem qualquer promotor será responsabilizado se não atentar para os rigores que as normas processuais, na hipótese, exigem! E pior: assim, por via reflexa, o Judiciário acaba frustrando sua jurisdição sobre a análise da procedibilidade dos seus feitos de improbidade, e capitulando ao Ministério Público o dever-poder de avaliar a regularidade das ações de improbidade a serem instauradas. Isso não é função da instituição ministerial, pois o Ministério Público é órgão responsável maior pela ação de improbidade, todavia não “dono” do jus dicere sobre as condições e pressupostos processuais sobre a mesma. O jurista Edgar Silveira Bueno Filho, comentando sobre quais decisões judiciais devem receber fundamentação, traz importantes aportes ao tema em foco:
Silveira Bueno tratou, igualmente, sobre o despacho decisório que acolhe denúncia (crime) oferecida pelo órgão do Ministério Público. Suas razões são aplicáveis, sobremaneira, aos gravosos processos de improbidade que possuem evidente natureza penal, todavia não criminal:8
Para elucidar a natureza e finalidade do dever-poder que deve ser cumprido pelos juízos de primeiro grau em ação de improbidade, valemo-nos do pensamento de Fernando da Costa Tourinho Filho, que, mutatis mutandis, se aplica ao tema em análise:
Além dessas opiniões doutrinárias, a moderna hermenêutica constitucional10 confirma nossa assertiva. Os novos elementos de interpretação constitucional, no que tange ao princípio da motivação dos atos judiciais, estabelecido no artigo 93, IX, da Constituição da República, ditam:
Aliás, a garantia constitucional da motivação constitui norma bifacial, ora se comporta como regra, ora como princípios.13 Se faltar completa motivação, ela é regra a ditar-lhe nulidade — “invalidade condicional” (Tércio Sampaio Ferraz); se houver motivação, mas essa foi dada sem atentar aos fins publicísticos e racionais da motivação, poder-se-á, diante dos dados ofertados em contraditório pelas partes (fáticos e normativos e probatórios), verificar que a jurisdição não foi adequada e suficiente ao momento preambular de admissão ou rechaço da inicial — “invalidade finalística” (Tércio Ferraz).
Essas razões todas pedem do Judiciário uma mudança de mentalidade. Pedem, especialmente na hipótese versada, que se abandonem velhos preconceitos em prol dos novos tempos, da Constituição do Estado Democrático de Direito instituído a partir de 1988. São interpretações como a ora criticada que fazem permanecer vivas, mesmo nas democracias constitucionais contemporâneas, antigas e prosaicas opiniões autoritárias, solapadoras de direitos e garantias da pessoa humana. Especialmente aquela que diz, sem o menor cuidado. “o juiz não está obrigado a responder todas as questões trazidas pelas partes...”! O legislador processual, ao tratar dos comandos legais do ato de recebimento da inicial acusatória em ação de improbidade, ao determinar essa hipótese de defesa para acusados, não o fez de maneira desarrazoada ou de modo que pudesse levar o desprezo, pelo Juiz, deste direito-garantia dos réus. Se a lei assegurou o exercício desta defesa, ela deve ser efetiva, e merecer a atenção do juiz no ato de recebimento ou rejeição da denúncia. Deve o magistrado apreciar os termos e fundamentos da defesa preliminar, de forma adequada e exauriente no ato de apreciação dos termos da inicial. Depois de comparar defesa preliminar e petição inicial, de maneira crítica, reflexiva, serena e independente, é que aceitará ou repelirá os termos da acusação de improbidade. Sem pender a balança da justiça para o lado da acusação, sem comportar-se como juiz delegado ou juiz promotor, mas como juiz justo e independente, livre de preconceitos, e cioso para cumprir seu dever. A defesa preliminar restará sempre emasculada, sem qualquer efetividade, desprezada, se no despacho/decisão de recebimento o Juiz não adentrar, atentamente, no exame das provas e argumentos apresentados pelas partes (artigos 283 e 396 do CPC). Para admitir ou rechaçar a demanda! O Juiz processante, não pode, sem a menor cerimônia, desprezar, relegar ao silêncio os argumentos apresentados em defesa preambular. E não é incomum nos atos de recebimento de inicias de improbidade não haver a mais mínima menção a qualquer argumento aduzido pelo réu. Ou haver adução de fórmulas vazias de significados, ou expressões retóricas, onde o juiz quer parecer como alguém que cumpriu seu dever... mas em verdade, por preguiça, preconceito ou mesmo desconhecimento do significado técnico-dogmático deste momento, para o devido processo legal de improbidade, deixa a desejar em termos de jurisdição efetiva e exauriente. Assim, a ausência de motivação judicial ou sua motivação insuficiente para dar conta do conjunto de argumentos relevantes das partes e respectivas provas, que marca os atos de recebimento de iniciais em ACPI, é mácula insanável, que demonstra que as garantias do contraditório e da ampla defesa também foram violadas. Insistamos: não é incomum o mais absoluto e tumular silêncio quanto à referência as provas dos autos (tanto do MP quanto as dos acusados de improbidade), no ato, por vezes, calado de recebimento da exordial. Isso demonstra, de um lado, falta de motivação, ausência de fundamentação, e, de outro, desprezo ao contraditório (que também integra a necessidade de motivação judicial — contradita do juiz ao argumento da parte) e a ampla defesa. Pois não havendo mínima atenção a tudo quanto se produziu em defesa preliminar, esta restará relegada, desprezada, silenciadas as razões defensivas do acusado. E quando isso acontece, o prejuízo é evidente e concreto, em drástica via judiciária, que afronta o status dignitatis do processado. A fundar parte de nossa crítica neste ensaio, ocupamo-nos da grande Mestra do Direito Processual brasileiro, Ada Pelligrini Grinover:
E o publicista Tito Costa, por sua vez, empresta-nos razões analógicas para firmarmos a valia de nossas premissas:
E adiante, citando jurisprudência da colenda Corte Paulista, transcreve:
Quando esses vícios forem verificados na decisão de recebimento que deve bem apreciar a inicial de improbidade, impõe-se a sua anulação, por medida de legalidade processual e exigência de escorreita e exauriente atuação judicial. Anulação que exige a interposição de agravo de instrumento21 (ou petição incidente,22 reclamando ao juiz processante da causa), para ser sanada, e que gerará juízo de retrato, positivo ou negativo, em primeiro grau de jurisdição (art. 523, §2º, do CPC). Todavia, como é nulidade absoluta e inconvalidável (art. 245, parágrafo único, CPC), questão de ordem pública processual (art. 267, IV, §3º, CPC), não preclui para o Judiciário e pode ser apreciada a qualquer tempo e grau de jurisdição.23 Podendo ser apreciada pelo Tribunal ou juiz de comarca, em qualquer momento de cognição no processo. Entendemos ainda, dada a natureza da garantia constitucional em foco e a nulidade gerada com seu desrespeito, que mesmo a ação rescisória, fundada no artigo 485, V, CPC, pode ser ajuizada para repelir tal vício processual absoluto, no biênio após o trânsito em julgado da ação de improbidade. Esperamos que este ensaio colabore com o debate público sério, racional e fundado, sobre abusos judiciais e ministeriais ocorrentes na aplicação de disposições processuais e/ou materiais da Lei nº 8.429/92. O que ora criticamos é apenas um preocupante exemplo, entre outros. 2 Conferir interessantes estudos de BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo e Constituição: o devido processo legal. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 68, out./dez. 1983, p. 55-78; e TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo legal e tutela jurisdicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. 3 Conferir o artigo clássico de José Carlos Barbosa Moreira, “A motivação da sentença como garantia inerente ao Estado de Direito” (Revista da Faculdade de Direito, Curitiba, ano 19, n. 19, 1978/1980, p. 281-294) e a brilhante monografia de Maria Thereza Gonçalves Pero, A motivação da sentença civil (São Paulo: Saraiva, 2001). 4 Estudos sobre processo à luz da teoria dos direitos fundamentais se encontram nos avançados trabalhos dos processualistas Luiz Guilherme Marinoni (Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 63-88, 191-214, 307-378); Daniel Mitidiero (Processo civil e Estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007); Eduardo Cambi (Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009). Para compreender a teoria dos direitos fundamentais, com profundidade e domínio do assunto: SILVA, Virgilio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009; SARLETE, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009; MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 5 “Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. (...) §6º A ação será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente, inclusive as disposições inscritas nos arts. 16 a 18 do Código de Processo Civil. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001) §7º Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001) §8º Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001).” 6 Cf. Seu O direito de defesa na Constituição. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 67. 7 Idem, p. 68. 8 Pensamos que o processo de improbidade e suas penas são, na maioria das vezes, mais gravosos que a maioria dos processos criminais aplicáveis aos fatos semelhantes pressupostos na LIA. No Brasil falta uma dogmática adequada a construir, com segurança, os pressupostos de pré-compreensão e de interpretação dos institutos penais no combate à improbidade — esse terceiro gênero, que não é Direito Criminal, mas também não é Direito Civil. O Direito Penal, para o Direito Sancionador Administrativo, deve ser sempre o grande arquétipo, o modelo teórico e prático a iluminar a aplicação das hipóteses sancionatórias e procedimentais da LIA. Embora os autores do projeto da Lei nº 8.429/92 quisessem, efetivamente, contornar tais salutares limites ao pensarem uma lei “sem amarras” para punir “a baixo custo” e “sem dificuldades sancionatórias”. Autores ligados ao Ministério Público, capitaneados intelectualmente pelo hojeMinistro do STJ Hermann Benjamim — vide o conservadorismo e as vezes reacionarismo de muitas posições suas no tema de improbidade: negativa de aplicação do princípios da bagatela; construção jurisprudencial que estende o prazo de prescrição das penas para prefeitos, caso haja mandato consecutivo; tese de que não há nulidade absoluta caso não seja oportunizada a defesa preliminar ao acusado em ação de improbidade; desnecessidade de defesa preliminar, se houver inquérito policial ou civil público antecedente etc.; o ato de recebimento não necessita motivação exauriente, porque o juiz não é o obrigado a apreciar todas as teses do réu, entre outras. 9 Cf. Processo penal. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1990. v. 1, p. 471. 10 Boa obra representante dessa visão é a do saudoso Celso Ribeiro Bastos, Hermenêutica e interpretação constitucional (3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002). 11 Cf. SARLETE, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 65-137. 12 Cf. ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 208-212; 248. 13 Para a distinção entre princípios e regras, ver nosso Conceito de Princípios Constitucionais (op. cit.) e nosso artigo “Princípios constitucionais e atividade jurídico-administrativa: anotações em torno de questões contemporâneas” (In: LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 254-293). 14 Cf. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 218-244; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 1149. 15 Existe substancial diferença entre princípios normativos constitucionais e princípios de interpretação da Constituição. Os primeiros são normas jurídicas, os segundos cânones de interpretação. Para tanto, ver texto de Ruy Espíndola, p. 40. 16 Ver MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense; e BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 17 Conforme seu artigo “Conteúdo da garantia do contraditório” (p. 17 a 44), em seu livro Novas Tendências do Direito Processual (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 31). 18 Cf. Seu Responsabilidade de prefeitos e vereadores. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 123. 19 COSTA, op. cit., p. 124. 20 Idem, p. 125. 21 Ver o seguinte artigo da LIA: “Art. 17. (...) §10. Da decisão que receber a petição inicial, caberá agravo de instrumento. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001).” 22 Através do direito de petição, no feito, direito de petição judicial, conforme a dicção do artigo 5º, inciso XXXIV, letra “a”, da Constituição da República: “são a todos assegurados (...) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade [processual] ou abuso de poder.” (acrescentamos o vocábulo entre colchetes!) 23 Reforça essa ideia por este dispositivo da Lei de Improbidade: “Art. 17. (...) §11. Em qualquer fase do processo, reconhecida a inadequação da ação de improbidade, o juiz extinguirá o processo sem julgamento do mérito. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001)”. Como citar este artigo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
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Advogado Correspondente em Belo Horizonte e em todo o Estado de Minas Gerais. http://correspondentemg.webnode.com.br/ correspondentemg@gmail.com
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Motivação judicial e ação de improbidade: a validade da decisão que acolhe ou rejeita a inicial e os meios de sua impugnação
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