Urgência municipal |
Palavras-chave: Administração Pública. Calamidade pública. Atos declaratórios Dispensabilidade de licitação. Sumário: I Introdução – II Caracterização de urgência – III A urgência no direito positivo brasileiro – IV Conclusão Urgência está no coração das realidades da vida cotidiana. Precipitar-se ao socorro de um acidentado, avançar o sinal vermelho de trânsito para deixar passar uma ambulância, apertar um sinal de alarme, ou mais simplesmente chamar um médico de plantão, essas situações podem ser banais. O termo mesmo está constantemente sob nossos olhos: no elevador (botão de parada de urgência; no metrô, freio de urgência; nas autoestradas, cabines e postos de chamada de urgência; diante dos hospitais, entrada de urgências etc.). Parece desde então inevitável que o direito, que tem por objeto organizar as relações sociais, seja muitas vezes confrontado com esses dados. Curiosamente, entretanto, se a urgência está em toda parte, no direito público interno, ela parece não se comprazer dessa situação. Sem dúvida, a palavra urgência é muitas vezes pronunciada na linguagem corrente e poucas vezes é recebida pela linguagem dos juristas. Mas ela evoca a teoria dos poderes de crise, ou o problema da execução forçada dos atos administrativos. Nos principais manuais de direito público, o índice analítico, quando comporta a palavra urgência, reenvia-a aos capítulos relativos ao estado de urgência, às circunstâncias excepcionais ou à execução de ofício. A urgência, na verdade, parece ocupar espaço bem restrito nos domínios limitados da ação do poder público... A urgência é então prevista pelo Constituinte, pelo legislador, pelo poder regulamentar, ou pode, em todo estado de coisa, ser admitida a posteriori pelo juiz. (Pierre-Laurent Frier. L’Urgence) I Introdução Impende refletir sobre um tema recorrente na prática, no cotidiano das pessoas, da comunidade e na Administração Pública e que, no plano da doutrina e da jurisprudência, a meu sentir, não é suficientemente apropriável, qual seja a temática envolvendo as consequências jurídicolegais dos atos declaratórios e/ou de decretação de urgência, de emergência e de calamidade pública, essa tríade impactante da anormalidade jurídica que desafia juristas. A temática jurídica, que implica essas medidas tomadas por autoridades públicas, é complexa e, portanto, em se tratando da análise dos atos administrativos, que se lavram para remediar situações incomuns e anormais, imprevisíveis e imprevistas, leva-nos a refletir sobre dois temas importantíssimos no direito, a saber, o tempo do direito e a patologia do direito, como afirma Georges Dupuis, Professor da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne).1 Na verdade, a noção coordenada do tempo do direito e da patologia do direito é uma noção espaço-temporal, porquanto, em determinado lugar e em determinado tempo, podem ocorrer e ocorrem situações danosas às pessoas, à comunidade e a bens, de cujas consequências jurídicas a lei não cuidou específica e expressamente, e há situações fáticas que não podem aguardar medidas burocráticas próprias do tempo de direito, quando, nesse quadro, se cogita da patologia do direito (ausência de solução jurídica prevista mediata e imediatamente). A exposição dividir-se-á em duas partes. Na primeira parte, ver-se-á a caracterização do termo urgência; conceito geral e necessidade e conceito específico, com sua natureza no plano jurídico; as significações de urgência, de emergência, de calamidade pública; distinção, quanto à natureza e efeitos da declaração e da decretação da urgência e os titulares da prática desses atos. Na segunda parte, ater-se-á à configuração da urgência no direito positivo brasileiro, enfatizando a urgência de matriz constitucional, de matriz legal; o alcance e o prazo das medidas e dos efeitos da urgência; e, por fim, o controle dos atos administrativos, provenientes da declaração e ou decretação da urgência, e conclusão. II Caracterização de urgência 1 Urgência, noção complexa Etimologicamente, o termo urgência provém do latim (urgentia, ae, grande aperto, necessidade, e urgente, do particípio presente urgens, urgentis, do verbo latino urgere, urgir, apertar einstar). Como se sabe, toda pesquisa sobre a definição da urgência não é fácil para os juristas. É que a urgência faz parte dos conceitos difíceis de precisar, escapando a toda formulação inspirada dos filósofos e dos matemáticos, razão pela qual os juristas que a estudaram chegaram a conclusões pessimistas. Nesse sentido, P. Jestaz2 afirma que “definir a urgência de uma maneira rigorosa é empreendimento destinado ao fracasso. A maior parte dos autores que tentaram defini-la conseguira apenas fórmulas imprecisas, gravitando todas em torno da ideia de prejuízo em decorrência de atrasos”. Estima-se que “toda tentativa de estabelecer um limite temporal da urgência e de fixar o momento a partir do qual ele se constitui seria arbitrário”.3 Na verdade há “uma indeterminação da noção de urgência,4 sendo assim a noção de urgência não é nem simples, nem constante... e que ela é vinculada a uma apreciação em cada caso concreto..., sendo relativa e contingente”.5 Noção complexa, a urgência constitui na Administração Pública, e, portanto, no direito, aquela contextualização, que, não se identificando com o caso fortuito ou a força maior na esfera civil, avizinha-se deles, na produção de efeitos jurídicos, cada qual, porém, com sua formulação própria e específica. Assim, no direito civil brasileiro, o art. 393 do Código Civil, quanto ao inadimplemento de obrigações de devedor, preceitua: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. No art. 647 do Código Civil, em se tratando de depósito necessário, estatui-se: “É depósito necessário (II) o que se efetua por ocasião de alguma calamidade, como incêndio, a inundação, o naufrágio ou o saque”. Percebe-se que esses dispositivos do Código Civil, em se tratando de força maior ou de caso fortuito quanto à exclusão de responsabilização pelo inadimplemento de obrigação e quanto ao depósito necessário efetuado por ocasião de calamidade, como incêndio, inundação ou saque, não aperfeiçoam o entendimento e o conceito de calamidade pública, emergência e urgência, objeto de nossas indagações, razão pela qual toda construção doutrinária pertinente se faz segundo princípios e normas de direito público. 2 Conceito geral de urgência e necessidade Urgência é uma situação carregada de necessidades extremas, cuja constituição, num espaço temporal de atividades, foi produzida, quer em razão de fenômenos da natureza, como intensas chuvas, desmoronamentos, quer em razão de atos voluntários da atividade humana, como rebeliões, caos nos sistemas de prestações de serviços públicos, como greves, situações essas geradoras de prejuízos a pessoas, bens e serviços. Urgência é necessidade de agir de imediato para evitar danos às pessoas, bens e serviços, na dimensão comunitária. A necessidade, quanto aos efeitos, produz consequências mais amplas que a urgência, porque a “necessidade está na origem de todas as obrigações das autoridades públicas, enquanto a urgência somente é necessidade em situações particulares”.6 A necessidade produz consequências mais amplas que a urgência, porque caudatária de todas as obrigações públicas, enquanto a urgência se exercita e se invoca em certas condições e hipóteses. Mas a urgência, sob o plano da execução, confere poderes mais amplos às autoridades que têm que agir de imediato, com medidas mais constritivas que a necessidade.7 A urgência depende da impossibilidade de a administração agir de outra maneira em razão do interesse público que excepciona a violação da regra de direito. Porquanto três elementos, segundo a opinião de juristas, caracterizam a urgência: a situação deve ser incontestavelmente anormal e exorbitante; a administração deve estar na impossibilidade de agir pelos meios regulares e o interesse público deve estar gravemente ameaçado.8 Eis aí o seu conceito geral, sua compreensão maior. 3 Conceito específico de urgência Especificamente falando, a urgência se caracteriza e, portanto, se conceitua, quando a medida que provém de fontes qualificadas, como a que resulta de intempéries da natureza, ou de atos da própria atividade humana, que a peculiarizam. Daí chamar-se urgência natural, em razão de eventos da natureza (tromba d’água, chuvas intensas, desmoronamentos, terremoto) ou urgência administrativa, por causa da vontade humana (greve, tumulto nas cidades, inércia iterativa de medidas a serem tomadas por um dos poderes que inviabilizem ou retardem prestações de serviços públicos). São situações que, a despeito de imprevistas e até imprevisíveis, na hipótese de urgência como fenômeno da natureza, e, a despeito de previsibilidade como em hipótese de greve e de tumultos em movimentos de grupos sociais na cidade, exigem das autoridades, notadamente municipais, tomadas de medidas administrativas necessárias à proteção de pessoas, de bens e de serviços. É um quadro de anormalidade, que pressupõe inarredáveis medidas que serão igualmente incomuns, porque se cogita, na situação, de procedimentos no quadro da patologia do direito, de exigir correções jurídicas na atuação administrativa imediata, sem o ritual comum da normalidade jurídica. 4 Significações de urgência, de emergência, de calamidade pública A urgência tem como fontes primárias as decorrentes de normas escritas e como fontes secundárias as que se inserem no quadro fático de exigências admitidas a posteriori, razão pela qual as reflexões sobre o tempo, que veremos mais adiante, são extremamente pertinentes. Há também caso de urgência admitida em ausência de texto, mas consentida pela administração e reconhecida pela Justiça, inferindo-se que há a urgência no quadro da lei (que prevê a hipótese) e há urgência à margem da lei e até contra a lei, hipóteses não previstas normativamente. Encontram-se no cotidiano da doutrina, do legislador e da jurisprudência os termos urgência, emergência e calamidade pública. Seriam sinônimos? Não especificamente. A urgência, como a própria etimologia indica e como as apreensões humanas priorizam, tem mais repercussão como quadro de anormalidade do que a emergência. As expressões “emergência” e “urgências” nos hospitais já indicam patamares diferentes entre as duas quanto à sua extensibilidade conceitual e à dimensão apropriável pelos pacientes. Emergência provém do latim, emergentia, neutro plural de emergens, emergentis, particípio presente do verbo latino emergere, emergir. Vê-se, enquanto a urgência, no latim, significa grande aperto, necessidade, a emergência não possui a mesma intensidade aflitiva de situação de fato mais do que a proveniente da urgência, a despeito de se tomarem as duas como idênticas, na fixação jurídico-normativa, não havendo balizamento técnico da diferenciação. Calamidade vem do latim, calamus, calami, que quer dizer cana e pena de escrever, porque antigamente as penas faziam-se de certas canas delgadas, conforme anota Vieira;9 calamitas,calamitatis, perda de colheitas causada pela geada, saraiva etc., como em calamitas fructuum, colheita escassa. No vernáculo é uma tragédia de grandes proporções resultante de eventos da natureza, como chuvas torrenciais, tempestades, catástrofes mesmo, cuja caracterização como tal pertence à avaliação da autoridade que editar o respectivo ato. Chuvas podem produzir estados de urgência, declarados de emergência e de calamidade pública, dependendo do grau de intensidade das intempéries com consequências mais danosas ou ruinosas à comunidade, às pessoas, bens e serviços. Também incêndios em prédios públicos e ou particulares nas cidades podem desencadear processos de urgência. É que, tratando-se da responsabilidade que pesa sobre a Administração Pública por ocasião de prejuízos suportados por particulares, não importando sua natureza, cuja conformação factual reivindica o concurso de atividades administrativas, impõe-se, desde logo, seja admitida a assistência às pessoas particulares e a seus bens em perigo, porque se cogita, na essência, de atribuições da coletividade pública. Tudo vai depender, porém, de cada situação gravosa ou ruinosa de repercussão comunitária, nos limites da lei e do princípio da obrigação de intervir. Sabe-se que o termo emergência ganhou mais espaços na sua compreensão mais comum até pela influência internacional proveniente do inglês (emergency); veja-se: emergência nuclear; emergências climáticas; estoques de emergência (de commodities, de gasolina, de alimentos etc.); emergência hospitalar; emergência escolar; emergência administrativa, quando greves ou similares eventos perturbam a execução de serviços públicos, ou quando um dos poderes constituídos, notadamente o Legislativo, não vota, por exemplo, as leis orçamentárias ou as que as alterem, negando abertura de créditos adicionais, gerando ingovernabilidade, configurando-se aí hipótese de emergência administrativa mais reiterada.10 A continuidade de certos serviços públicos é defesa da comunidade. O serviço mínimo assegurado, na urgência declarada em razão de greve, concilia dois princípios: o direito de greve e a continuidade do serviço público. Agindo assim, é possível até que se inibam iniciativas políticas de greve no serviço público, como sói acontecer.11 Como se pode imaginar greve nos serviços de saúde, de educação fundamental, nas creches onde crianças na sua maioria tomam refeições as melhores senão as únicas completas do dia? É caso de emergência administrativa, como visto, o fato de o legislador omitir-se na função de legislar ou de não disponibilizar ao Executivo os recursos orçamentários necessários à provisão da comunidade. Esta omissão é corriqueira lamentavelmente, como comuns são as recusas de projetos de leis orçamentárias ou de leis de abertura de créditos orçamentários. Entretanto, porque o Legislativo municipal tem-se mostrado useiro e vezeiro nessa omissão, tal circunstância não afasta o quadro de anormalidade para ativar os poderes da emergência. Falta, na verdade, a responsabilidade social do legislador, que por motivos inconfessáveis e meramente político-partidários se demitem de suas funções, visando apenas, com sua ação, prejudicar a Administração ou o Executivo, de quem é hostil politicamente. Falta-lhe espírito público e visão de estadista de quem detém o exercício do poder de legislar, comportamento desqualificado de políticos que não têm compromisso com a comunidade.12 É, portanto, a emergência termo polivalente, mais encontradiço e empregado que a urgência e a calamidade pública, a despeito de a urgência possuir dimensão maior de compreensão terminológica e ser, à evidência, excludente de normalidade jurídica, a tal ponto de qualificar a própria emergência. Com efeito, foi o legislador que, tentando conceituar (definir pelo definido?) as causas de dispensabilidade de licitação, provocou se devesse procurar entender bem os termos calamidade pública, emergência e urgência, consoante está no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93: Art. 24 – É dispensável a licitação: IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos. Tem-se na descrição conceitual da lei, quanto aos casos de emergência, de calamidade pública, que a caracterização da urgência se alia a situações temporais e fático-espaciais definidoras da obrigação de intervenção imediata, para proteção do interesse público, ou para assegurar a ordem, a salubridade e a tranquilidade públicas, assim como a continuidade de serviços públicos. Nessa descrição normativa do inciso IV do art. 24 da Lei nº 8.666/93, contém-se a mesma complexidade conceitual da urgência indicada no início desta exposição. Não houve, ontologicamente falando, nenhuma contribuição do legislador ao conceito de urgência. Sua preocupação repousara apenas na caracterização da emergência e da calamidade pública, para cuja conformação a presença da urgência de atendimento de situação se revela necessária, porque aqui a urgência é inquestionavelmente uma necessidade imediata de intervenção. Especificamente, o legislador invocou a emergência e a calamidade pública, como casos de dispensabilidade de licitação, sem se aprofundar nos conceitos de cada um deles, mesmo porque esse não é seu objetivo nem sua missão, deixando para a doutrina a valorização meritória de cada elemento. Destarte, a calamidade pública é uma situação de (in)suportabilidade ameaçada segundo o direito escrito, que exige medidas interventivas de urgência e de necessidades imediatas, sob pena de prejuízos a pessoas, bens e serviços da comunidade. É o mais alto grau de situação de perigo e de dano efetivos, podendo-se afirmar que a calamidade pública (pode haver calamidade que não seja pública também) constitui fato catastrófico, de dimensões previamente incalculáveis e de consequências ruinosas maiores. A emergência é hoje, como se afirmou, termo muito mais acolhido e usado. Veem-se nos hospitais, nos prédios públicos e privados, nos veículos e aeronaves as saídas de emergência; as ambulâncias já se caracterizam como emergência. Ao arrimo até da lei precitada, o termo emergência se democratizou, é mais utilizado, embora no seu aspecto numênico, no seu núcleo, a obrigação de intervenção imediata caracteriza a situação de urgência, que é necessidade, a iminência de um perigo. Não, em absoluto, a urgência, que é eventual, não pode ser permanente, mas o perigo iminente decorrente de determinada situação fática em que se insere a urgência tem que ser de plano demonstrável. E o que é iminência? A iminência é o risco de que um acidente se produza em curto prazo. Se a ameaça é suficientemente grave para que o perigo possa vir de um momento a outro, a autoridade pública deve agir urgentemente, porque, desde que certos elementos tornam a situação suficientemente caracterizada, um acidente pode produzir-se a todo momento.13 A urgência depende da impossibilidade de a administração agir diferentemente, em virtude do interesse público que admite superar a regra de direito de situação normal, porque anormal o quadro de urgência. 5 Os atos decretáveis e declaratórios e seus titulares Ocorrida a situação emergencial, calamitosa ou de urgência, o que a autoridade pública deve fazer? Satisfazer o princípio da obrigação de intervenção imediata. Mas quem detém essa obrigação enquanto autoridade, no plano do direito escrito? É quem possui o poder de ação. É a autoridade administrativa, no nível municipal o Prefeito ou seus Secretários, por delegação, no nível estadual o Governador ou seus Secretários, por delegação, e no nível federal o Presidente da República ou seus Ministros, por delegação. Como se sabe, a execução de uma norma é a sua realização. Assim, “a norma e sua execução são bem distintas: a primeira é puramente ideal e ela não possui nenhuma existência fenomenal a despeito de ela dever vir expressa formalmente por escrito, verbalmente ou por gesto; a segunda, ao contrário, inscreve-se na realidade sensível”.14 É nessa realidade sensível, portanto concreta, que se exercem os poderes de decretação ou de declaração do estado de calamidade pública, de emergência e de urgência. Infere-se haver a decretação e a declaração. São atos administrativos idênticos os que decorrem desses termos? Não são diferentes quanto às consequências. A diferença está na titularidade de quem enuncia a medida. Se for Chefe do Executivo, podem-se utilizar os termos de declaração ou de decretação. Se forem outras autoridades, como as delegatárias, essas só poderão declarar, jamais decretar, pois expedir decretos é atividade indelegável do Executivo. O ato decretável é constitutivo de uma situação jurídica. O ato declaratório nem sempre o é, pois apenas reconhece um fato já constituído. Não é ato constitutivo a declaração. Seja a calamidade pública, seja a emergência, uma e outra caracterizadas fenomenicamente pela urgência, decretadas ou declaradas, seus efeitos e consequências têm a mesma tonalidade e força para repercutirem no mundo jurídico. São atos administrativos que perfazem seu ritual para a satisfação do princípio da obrigação de intervenção imediata de imperativo de ordem temporal, porque, a uma, a urgência se revela indiscutivelmente condição de uma obrigação, e, a duas, o administrador se encontra em vários momentos diante de problemas a resolver, na medida em que sua ação, dentro desse princípio da obrigação, demonstra-se indeclinavelmente indispensável e, portanto, imediatamente necessária. E aqui, nesta contextualização fático-espacial-temporal, a liberdade de ação passa a ser obrigação, cuja avaliação meritória, de como, quando e onde, somente a autoridade administrativa é que tem o poder, carregando aí exercício de sua competência discricionária, insusceptível de sindicabilidade do Judiciário, salvo abuso de poder, desvio de finalidade ou sacrifícios de formas essenciais de procedimentos. No ato declaratório ou de decretação de calamidade pública, emergência ou urgência, deve-se indicar a extensão das medidas, a que território se destinam, o prazo, que pode ser prorrogado, por mais de uma vez, porque a extensão dos danos pode ultrapassar aquele inicialmente fixado, assim como outras consequências decorrentes do estado anormal a que se sujeita momentaneamente a comunidade. III A urgência no direito positivo brasileiro 1 A urgência de matriz constitucional A Constituição da República de 1988 prescreve, verbis: Art. 62 – Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Cogitando-se de edição de medidas provisórias pelo Presidente da República, acoplada à noção de relevância, que significa situação específica de importância ímpar para a comunidade (nacional, estadual ou municipal), a urgência é condição de sustentabilidade jurídico-normativa para a expedição de atos de expressão constitucional pelo Executivo com força de lei, desde que situações de anormalidade se configurem como ensejadoras de tais medidas, que são provisórias, porque calcadas na urgência, situação que não se compraz com a normalidade. Da mesma forma, no §3º do art. 167 da CR está prescrito que “A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.” As despesas urgentes e imprevisíveis, descritas no Texto Constitucional como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, dão sustentáculo ao Chefe do Executivo, autorizando-o a abrir crédito extraordinário, observados os termos do art. 62. Está aí a única hipótese de abertura de crédito extraordinário, e a expressão urgente qualifica as despesas imprevisíveis. Situação de anormalidade, que pode levar à ingovernabilidade.15 Ainda, avançamos mais, a Constituição da República no seu art. 5º prescreve: Art. 5º – (omissis) XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano. Não estaria aqui também pressuposição de medida de urgência a ser tomada pela autoridade? Sim, embora não conste do texto, mas a figuração da medida em caso de iminente perigo público intui a noção e a presença inarredável da urgência, de vez que perigo iminente é situação de resposta imediata e necessária à tomada de providências administrativas, no interesse público, para cuja identificação o termo urgência não pode ser negligenciado. Por fim, a Constituição da República dispõe sobre a decretação de estado de defesa, considerando situações excepcionais de anormalidade institucional iminente, contribuindo para o fato também calamidades de grandes proporções na natureza, estando aí implicitamente a urgência como necessidade de atuação imediata, consoante disposição do art. 136, verbis: Art. 136 – O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. 2 Urgência de matriz legal O Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, a Lei Geral de Desapropriações, no art. 15, prescreve o direito de o poder expropriante imitir-se provisoriamente na posse dos bens declarados de utilidade pública para os fins de desapropriação, desde que se alegue a urgência da medida e deposite a quantia arbitrada, na forma da lei. Tem-se aí caso de previsão legal do termo urgência, que se pode revelar necessidade extrema ou utilidade da intervenção estatal na propriedade privada. Neste particular, a alegação da urgência pode estar consubstanciada no decreto do Executivo ou então na própria petição inicial. Atos declaratórios, um decretável, outro meramente alegatório no impulso inicial da ação expropriatória. Mas, em todo caso, o termo urgência se qualifica como desencadeador de medidas de ação, mesmo numa situação de normalidade jurídica, como na hipótese de desapropriação, em que inexiste perigo e tampouco iminência sua. Assim estatui o art. 15 do Decreto-Lei nº 3.365/41: Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens. É caso de utilidade pública, para fim de desapropriação, “o socorro público em caso de calamidade” (art. 5º, c, Decreto-Lei nº 3.365/41). Retomando a Lei de Licitação, confira-se a hipótese de dispensabilidade de licitação, segundo o art. 24, inciso IV, já referido: Art. 24 – É dispensável a licitação: IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos. Inegavelmente a invocação de situações de emergência, de calamidade pública, portanto de urgência, tem-se manifestado mais segundo esse dispositivo legal. O Supremo Tribunal Federal, na Ação Penal nº 348-5-Santa Catarina, relator em. Ministro Eros Grau, julgada em 15.12.2006, Pleno, posicionou bem a questão de ocorrência de emergência, consoante interpretação do dispositivo da Lei de Licitação, na invocação da dispensabilidade de certame. O conceito de emergência encontra um dos seus elementos primaciais na urgência. Urgente, diz CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, é o que “não pode esperar sem que prejuízo se tenha pelo vagar ou que benefício se perca pela lentidão do comportamento regular, demasiado lerdo para a precisão que emergiu”. Assim diz ela — onde a Constituição ou a lei determina “caso de urgência”, deve-se ler: “na hipótese de ocorrer situação de necessidade pública que determine comportamento estatal em prazo mais rápido que o previsto para a situação de normalidade”. A caracterização da emergência, segundo o inciso IV do artigo da Lei n. 8.666/93, dá-se quando se manifestar hipótese de urgência em relação a qualquer das duas situações nele indicadas; e esta há de ser concebida, aqui, à luz (a) dos fins que justificaram a sua contemplação como elemento da norma e (b) dos padrões de cultura do momento e ambiente em que se a considere (= parâmetros da realidade). Por certo não se pode reduzir a noção de emergência àquilo que não é previsto nem esperado, nota comum às noções de força maior e caso fortuito, v.g. Está afetado por urgência, elemento primacial do conceito de emergência, o que se deve fazer imediatamente, velozmente, ainda que atinente a ação cujo empreendimento era previsto e esperado. A noção de emergência, tal como tomada no texto normativo que consideramos, envolve, como visto, dois elementos: urgência e situações nele descritas. O conceito de caso de emergência, tão logo preenchido o conceito de urgência — e porque o inciso IV do artigo 24 da Lei n. 8.666/93 definiu o sentido que o termo (vocábulo ou expressão) assume no seu contexto, enunciando uma definição jurídica — resultará perfeitamente determinado e preciso, ainda que o termo que o expressa, sua expressão, seja indeterminado. Assim, será inútil, descabida, despropositada qualquer construção intelectual voltada à explicitação do que efetivamente seja “caso de emergência”, da parte de quem eventualmente discorde da definição jurídica, de “caso de emergência”, enunciada pela artigo 24, inciso IV da Lei n. 8.666/93. A norma atribuiu à caracterização da urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares o rótulo de “caso de emergência”. (...) Caso de emergência, convém dizê-lo ainda, é situação de fato que se verifica em determinado momento de tempo. Sendo assim, nenhuma circunstância posterior a esse momento pode alterar a sua caracterização (dessa situação de fato) como tal, naquele determinado momento. Fatos, note-se bem, não são anuláveis. Apurada a urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos e particulares, tem-se, definidamente, naquele determinado momento de tempo, a ocorrência do pressuposto de licitação. Permito-me repeti-lo: caso de emergência é situação de fato, que não se pode anular. Na caracterização de situações de urgência, é fundamental a identificação do tempo. E tempo, segundo Santo Agostinho,16 não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivisível. O tempo, para ser estudado na sua metafísica, não se deverá dividir no ‘antes’ e no ‘depois’, mas considerar-se na sua síntese de continuidade. É que no conceito do tempo há dois elementos: um transitório (sucessão) e outro permanente (duração). O tempo psicológico não é mais do que a percepção dessa sucessão contínua com aspecto de localização e de anterioridade.17 Mais: O tempo psicológico é a impressão do antes e depois que as coisas gravam no espírito. É o sentimento de presença das imagens que se sucedem, sucederam ou hão de suceder, referidas a uma anterioridade.18 Por que essas reflexões sobre o tempo aqui? Possuem sentido de tradução intelectiva na aplicação da lei, no particular, eis que toda questão de urgência, que, na lei (inciso IV, do art. 24 da Lei nº 8.666/93), qualifica a noção de emergência, se relaciona ao tempo dos fatos ensejadores da aplicação do tema da patologia do direito, como se anunciou no início desta exposição. A urgência aparece como inovação da duração administrativa, isto é, um instrumento contra a lentidão, que, às vezes, se torna inércia, esta lentidão que muitas vezes é necessária para evitar o erro, decisão prematura, mas que é também forma e força de gastos, mesmo com certa morosidade.19 Daí, é bem possível que exista hipótese em que a espera para realização de procedimento licitatório normal significa se adotem medidas indispensáveis para evitar danos irreparáveis, quando o dano já não estaria consumado ou se consumando. E, se consumado, a medida se impõe igualmente, pois as consequências do evento permanecem gravosas e danosas ainda. Por isso a questão do tempo é importante na avaliação da urgência, cuja compreensão conformativa é de exclusiva competência da autoridade administrativa. Confira-se exemplo de Marçal Justen Filho:20 Assim, por exemplo, imagine-se a descoberta de risco de desabamento em uma edificação, exigindo imediatas providências. Suponha-se que tais providências, uma vez adotadas, afastam definitivamente o risco. A demora para licitação torna inútil o contrato ou produz sério risco de sacrifício de valores transcendentes. A contratação por emergência afasta a necessidade de outra contratação. A solução a ser adotada é clara e óbvia: far-se-á contratação direta, tendo em vista o problema da emergência. 3 Urgência reparadora e urgência preventiva Nos estudos e reflexões sobre o tema, vislumbra-se a existência de urgência reparadora e de urgência preventiva. É que a urgência tem muitas vezes por finalidade responder a eventos danosos que já se produziram. Neste caso, a fixação da data da intervenção é relativamente simples.21 Exemplo: um desmoronamento acontece e surpreende, levando prejuízos a moradores em áreas de risco, motivo por que as medidas têm que ser tomadas de imediato. É a urgência reparadora. Entretanto, as medidas de urgência não objetivam apenas responder a um evento já produzido. Devem igualmente permitir que se afaste ameaça precisa que pode acontecer brevemente. Neste estágio, é necessário distinguir a prevenção da previsão. A previsão consiste em tomar, com antecedência, as disposições necessárias para reduzir os riscos, o mais rápido possível. Esta prevenção é a longo termo e deixa em geral o tempo organizar-se. Assim, nesse nível pouco importa se as medidas são tomadas numa data antes que noutra, ainda que elas intervenham num prazo razoável, na medida em que essa ação não é urgente. A urgência, ao contrário, desempenha papel certo no estágio da previsão. As medidas de previsão, enquanto o evento está em fase de se produzir, visam a descobrir o risco e a dar o alarme ou o alerta, desde que possível, assim como disponibilizar, antes, um mínimo de meios de intervenção imediatos e todas as facilidades para a execução dos recursos exteriores necessários. A urgência não tem mais por único objeto responder a uma perturbação ou desordem já concretizadas, revela-se invocável quando se trata de impedir que tais perturbações ou desordens não se caracterizem.22 A urgência reparadora intervém depois do evento danoso; a preventiva existe quando a ameaça a afastar apresenta caráter de iminência, quando corre o risco de se produzir a curto prazo, motivo por que as datas da caraterização da ameaça apresentam particularidades que devem ser avaliadas,23 na medida em que os eventos posteriores são compatíveis com a urgência inicial do ato. Ademais, nessa garimpagem do termo urgência nas leis, destaca-se a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, que dispõe sobre normas de finanças públicas voltadas para a gestão fiscal responsável, a chamada LRF, cujo art. 65 prevê medidas atenuadoras de restrições, quando ocorrer calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, no caso dos Estados e dos Municípios. Atenha-se ao fato de que quem possui o poder de decidir é o Executivo, decretando o estado de calamidade pública; apenas a LRF, nesse particular, para que se atenuem restrições aos seus parâmetros, prevê que seja reconhecida a calamidade pública pelos Parlamentos. Entendo até que, no que diz respeito aos Municípios, a exigência de reconhecimento pela Assembleia é inclemente senão inconstitucional, consoante anotei já.24 Eis os termos do dispositivo legal da LRF: Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação: I – serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23, 31 e 70; II – serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9º. Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput no caso de estado de defesa ou de sítio, decretado na forma da Constituição. Por derradeiro, a Lei nº 12.305, de 8 de agosto de 2010, que dispõe sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos, preceitua no §1º do art. 47 que: Quando decretada emergência sanitária, a queima de resíduos a céu aberto pode ser realizada, desde que autorizada e acompanhada pelos órgãos competentes do Sisnama, do SNVS e, quando couber, do Suasa. A emergência sanitária passa a ser uma situação de atendimento necessário, imediato, quando decretada pela autoridade competente. Vê-se aí mais uma hipótese legal de necessidade de agir, e a urgência aqui não é uma condição de exceção, tal como a urgência alegada na desapropriação, diferentemente das demais hipóteses até agora examinadas. Eis aí o perfil constitucional e infraconstitucional, pertinente à urgência, quando a autoridade administrativa intervirá imediatamente, satisfazendo-se o princípio da obrigação. 4 O alcance e o prazo das medidas e dos efeitos de urgência Há situações de execução contínua e de desaparecimento progressivo da urgência. O esvaziamento do tempo progressivamente transforma os dados do fato acontecido há algum tempo. De consequência, a urgência pode ser invocada durante certo período. Havia uma data, um período em que a intervenção era necessária; não interveio a autoridade, ocorrido algum tempo, teria desaparecido a urgência? Não significaria ausência de correspondência àquela conjuntura de urgência atraso das medidas a serem tomadas? Somente os casos concretos, na análise da espécie, é que devem dar soluções a essas questões. Não há dúvida, porém, quanto à execução contínua. Permanecem sempre os motivos da urgência, agora traduzidos na contemporaneidade das consequências dos atos. Ex.: um desmoronamento, depois de intensas chuvas, em área de risco, mesmo calculável, produz continuidade da urgência mesmo com a execução contínua das medidas, que podem até ensejar outras situações emergenciais, como as decorrentes de epidemia e de medidas de profilaxia que devem ser tomadas de imediato. Doutra parte, invoca-se a urgência, no período e para prazo certo. Mas, nesse período, a autoridade não conseguiu dar sequência plena às medidas, que, em razão de ausência de recursos próprios, demanda às autoridades estaduais ou federais que disponibilizem recursos financeiros suficientes. Ora, tanto no plano estadual quanto no federal, os atendimentos a tais demandas carecem de tempo, quer em razão do próprio planejamento, quer em razão da burocracia para reconhecimento da urgência para assim deflagrar-se o plano de aplicação dos recursos; por isso leva-se tempo. Não é imediata a liberação dos recursos, como sói acontecer.25 Nesse caso, pode-se prorrogar a validade do prazo de urgência até que os recursos efetivamente sejam repassados, atendendo-se assim ao princípio da pertinência administrativa. Inexistiu culpa do administrador na e para a execução dos serviços e obras de emergência, que contavam com recursos do Estado ou da União, que têm procedimentos burocráticos não rápidos de atendimento, tal como o reconhecimento via atos próprios do estado de urgência ou emergência e depois a inclusão dos recursos no plano de ajuda e de aplicação, conforme orçamento. As obras demoram. Aí não há falar em falha da administração nem desaparecimento progressivo de urgência. As consequências ficaram. E não há como anular fatos. Pode-se, pois, renovar e prorrogar quantas vezes necessário o estado de urgência, até a chegada definitiva dos recursos repassados, realizando-se os serviços ou executando-se as obras, com a dispensabilidade da licitação, mediante contratação direta, em razão também do princípio da pertinência. Só não se pode prorrogar o contrato administrativo firmado com base na dispensabilidade de licitação, por vedação expressa da lei. Se, porém, o desaparecimento progressivo da urgência se dera por incúria da administração, sem motivo plausível pois, não se vislumbra possível mais estender o prazo e os efeitos do estado da urgência — o que aliás até agrediria o princípio do planejamento, na medida em que a incúria administrativa não pode ser premiada. Há que se valorizar a interpretação legal diante dos fatos. A questão da retroatividade comparece aqui nessas reflexões. Como, aparentemente, fazer depender a regularidade de um ato administrativo posterior na medida em que os motivos têm que ser contemporâneos aos fatos ensejadores da providência interventiva da autoridade? É também o caso concreto que vai caracterizar a expedição de medidas com efeitos retroativos ou não. Os formalismos não podem ser desprezados; nas urgências há também formas, como vimos; na sequência de atos dela decorrentes, há também formas que devem ser observadas, mesmo em se sabendo que a urgência é causa de supressão ou de simplificação de formalismos. Há que se ter em mente também, na caracterização conceitual da urgência, no caso concreto, aplicação do princípio da adequação do objeto da medida de urgência ao fim visado, razão por que se permite avaliar e analisar os diferentes poderes da urgência. O princípio da economia dos meios, que está na base da necessidade, irmã siamesa da urgência, atém-se adequado às implicações do princípio da finalidade. É que o direito aparece como um corpo de regras que organizam a vida social. Responde à dinâmica da vida; assim, a ação do administrador, que é dinâmica, que é obrigado a agir de ofício, deve sempre confrontar as situações cotidianas e práticas — só ele é o juiz dessa avaliação —, aos problemas de adequação das disposições legais iniciais, que são relativamente imutáveis, com a realidade essencialmente flutuante.26 O interesse primário de respeitar o direito é superado pelo interesse superior de restabelecer a missão social do direito.27 5 Controle judicial dos atos declaratórios e decretáveis de urgência Nenhum ato que viole direitos ou que seja editado com abuso ou desvio de poder, nas declarações ou decretações de estado de urgência, pode ser afastado da apreciação do Poder Judiciário. Ao Judiciário é vedada a avaliação meritória se é caso de calamidade pública, de emergência ou de urgência, se a extensão da medida alcança esta ou aquela região — desde que todas tenham sido atingidas pelos efeitos das medidas que ensejaram a intervenção administrativa, assim como o prazo, sua prorrogação e até mesmo sua renovação. É que há um procedimento a ser seguido nesses atos e para esses atos de anormalidade, e muitas vezes esse procedimento tem que ser editado pela própria administração, quando se decidiu pelas medidas. Segui-lo é lhe obrigação inarredável. Somente o controle da legalidade e da formalidade é que o Judiciário, se provocado, pode fazer, jamais o de mérito, como às vezes tem ocorrido. A administração permanece senhora do momento e dos meios de intervenção, ativando a competência discricionária da autoridade. A competência, porém, é vinculada, quando a intervenção é obrigatória: não se pode fazer nada senão agir de imediato, não sendo, pois, discricionária a escolha do momento de agir, já que o conteúdo da ação se entende ter sido prefixado, devendo-se tomar as medidas mais adaptadas e adaptáveis à situação de urgência. Uma vez preenchido esse imperativo, a administração recupera margem de manobra e de escolha entre diferentes meios que eficazmente concorrem à formação e à realização da obrigação. É sua liberdade de escolha e de ação nesses limites. IV Conclusão A urgência é um princípio de caráter pragmático, como vimos, destinado a se colocar ao lado dos princípios de razão social e de equidade coletiva, porquanto ela, a urgência, como a necessidade, constituem ambas, no contexto da patologia do direito, segundo enunciado no início desta exposição, exigência impostergável da ordem social e pública, da segurança de pessoas, de bens e da salubridade pública. Viu-se que dos imperativos legais que a urgência e a necessidade de intervenção, a aplicação do princípio da obrigação de intervir, a legalidade estrita, a vontade mesma da lei, sofrem atenuação na medida em que a legalidade de valor absoluto não existe, observando-se sempre, aqui e alhures, o princípio teleológico de adaptação constante da administração à sua missão de servir na boa direção, assim como o princípio da estrita proporcionalidade. O poder público, para cumprir sua missão, deve sempre dispor dos meios jurídicos que lhe são necessários, e é nessa direção que se alojam os poderes da urgência de tradução e de adaptação constante às necessidades da situação fática, em dado momento e em determinado espaço. 1 DUPUIS, Georges. Prefácio. In: FRIER, Pierre-Laurent. L’Urgence. Paris: LGDJ, 1987. p. I. 2 JESTAZ, P. L’urgence et les principes classiques en droit civil. (Thèse). Paris: LGDJ, 1968. p. 7. 3 JESTAZ, op. cit., p. 7. 4 NIZARD L. Les circonstances excepcionnelles dans la jurisprudence administrative. (Thèse). Paris: LGDJ, 1962. p. 116. 5 TERCINET, R. M. L’acte conservatoire en droit administrative. (Thèse Grenoble), Paris: LGDJ, 1979. p. 95, 96. 6 FRIER, op. cit., p. 137. 7 FRIER, op. cit., p. 124-137. 8 FRIER, op. cit., p. 145. Cf. também VEDEL, G. Droit administratif. Paris: Sirey, 1963. p. 403 e RIVERO, J. Droit administratif. Paris: Dalloz, 1984. p. 89. 9 VIEIRA A. Sermão da terceira dominga da quaresma. In: PÉCORA, Alcir (Org.). Sermões. São Paulo: Hedra, 2000. p. 162. 10 Para se certificar do emprego mais comum de emergência na literatura jurídica, pode-se conferir, entre outros, Mireille Delmas-Marty (Vers une communauté de valeurs?. Paris: Seuil, févr. 2011. p. 11-13, 20-39), ao se referir à emergência de uma comunidade humana em escala mundial; à medida que emerge (este) novo monstro jurídico, imbricação entre governança e Estado de direito, nas relações internacionais e supranacionais; ao lugar do direito na emergência de uma comunidade humana de valores, e à emergência de uma comunidade mundial. Vê-se, aí, quantas exposições adotadas pelo termo emergência, precisando seu uso ser mais comum, o que afasta aquela situação característica definidora de proximidades urgenciais. Na linguagem jurídica, porém, a emergência constitui exceção a quadros de normalidade, desde que invocada como tal pela autoridade competente, sem, contudo, enfraquecer o conteúdo de urgência, que a qualifica. 11 Mais da metade das greves ocorridas no Brasil é dos servidores públicos, considerando a ausência de punições aos movimentos grevistas mesmos ilegais — e o são na sua maioria. Nesses últimos oito anos as paralisações em serviços públicos essenciais passaram a ser uma constante, e os responsáveis têm até premiado os faltosos e insubordinados. É uma total leniência, a serviço do corporativismo crescente, por isso a função pública revela não servir nem garantir, mas se servir e se garantir, como há muito denunciamos, aqui e alhures. 12 Digo comunidade, não sociedade. Comunidade, que é o produto natural de uma solidariedade de base espontaneamente apreendida e sentida, diferente, pois, da sociedade, que é fruto da vontade exigindo tomada de consciência e das normas jurídicas para garanti-la, como as diferencia Mireille Delmas-Marty (op. cit., p. 11). A comunidade é mais próxima da cidadania e, consequentemente, da humanização das relações pessoais, concretamente palpáveis, pelo aprendizado cultural do que deve ser. Daí, quando falta aos políticos o verdadeiro espírito de estadista está a se dizer que lhe falta não o espírito social, mas o espírito comunitário, cuja compreensão antropológica e ontológica é ínsita à condição humana nas relações de vizinhança e de pertencimento à comunidade, de que é parte qualificada como ser humano, não apenas como membro político pela força das preferências éticas que se desgarram do teatro da convivialidade comunitária. 13 FRIER, op. cit., p. 38. 14 DUPUIS. Les privilèges de l’administration, 1962. p. 293. 15 Sobre a possibilidade de adoção de Medidas Provisórias em nível municipal, Cf. Nosso Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 137, 138), especialmente no que diz respeito à ingovernabilidade municipal. 16 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J. e Ambrósio de Pina, S. J. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 315. 17 Idem, ibidem, p. 334. 18 Idem, ibidem, p. 331. 19 DUPUIS, op. cit., p. 2. 20 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13. ed. São Paulo: Dialética, 2009. p. 298. 21 FRIER, op. cit., p. 35. 22 FRIER, op. cit., p. 35, 36. 23 FRIER, op. cit., p. 37. 24 CASTRO, José Nilo de. Responsabilidade fiscal nos municípios. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 129. 25 A questão de liberação de recursos federais para atendimento de cidades vítimas de enchentes e desabamentos motiva o governo federal no sentido de agilizar os repasses com a criação do cartão calamidade, medida essa que, além de propiciar atendimento mais rápido às cidades vítimas de intempéries, nas compras emergenciais, implicará agilidade no controle dos gastos, perante a Secretaria Nacional de Defesa Civil (Cf. Estado de Minas, sábado, 9 abr. 2011). 26 FRIER, op. cit., p. 523. 27 JOUANDET, J. Les régimes de crise. (Thèse). Paris: multigr., 1969. p. 6. Como citar este artigo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
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Advogado Correspondente em Belo Horizonte e em todo o Estado de Minas Gerais. http://correspondentemg.webnode.com.br/ correspondentemg@gmail.com
terça-feira, 16 de agosto de 2011
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